Tenho certeza de que é do conhecimento geral dos amigos enófilos que o uso do anidrido sulfuroso, o SO2, é justificado sobretudo pela suas duas principais ações: antioxidante e antisséptica. Todavia, ele tem sido estigmatizado por seu reconhecido potencial tóxico e causador de desconfortos como dores de cabeça e de estômago em pessoas sensíveis, principalmente os chamados atópicos como os alérgicos e asmáticos.

O SO2 só tem ação tóxica quando se encontra na forma “livre” e a sua quantidade total é a soma de sua forma livre com a sua forma combinada (ou molecular), ou seja, aquela que por afinidade química se liga a outras substâncias como no caso do vinho, os açúcares, aldeídos, cetonas e o oxigênio.

O suco de uvas se constitui um meio instável quimicamente que tende espontaneamente a se transformar sucessivamente em um produto mais estável. Assim ocorre a fermentação alcoólica que transforma os instáveis açúcares em etanol mais estável e finalmente ocorre a fermentação acética que transforma o etanol em ácido acético, último ponto de equilíbrio químico. O vinho é uma etapa intermediária e para ser preservado assim, deve ser estabilizado por adição de uma substância que impeça o curso natural de sua degradação e o SO2 é o mais versátil destes aditivos.

Ação antioxidante: uma de suas ações fundamentais uma vez que o mosto de uvas tem um enorme potencial de oxidação. Para que se tenha uma idéia, um mosto é de 10 a 40 vezes mais “oxidável” do que o seu vinho correspondente e isso se deve às atividades enzimáticas que ocorrem quando da primeira prensagem das uvas que liberam a tirosinase, uma enzima que hidrolisa os polifenóis. Lembremos que estas variações podem ser explicadas pelo fato de o mosto ser um meio inicialmente ácido e aquoso, sendo que ao longo da fermentação ele vai se tornando diferente por se transformar em um meio hidroalcoólico que vai lhe garantir uma maior estabilidade. O SO2 age removendo e indisponibilizando o oxigênio do meio e inibindo as enzimas do tipo oxidases, que catalisam as reações de oxidação.

Ação antisséptica: o anidrido sulfuroso mata bactérias lácticas, permitindo o pleno controle sobre o início da fermentação malolática (é muito importante que o enólogo não deixe esta fermentação se desencadear espontaneamente) e elimina o acetobacter, germe que necessita do oxigênio para sobreviver (aeróbico) e responsável pela reação de formação do vinagre, último estágio de tentativa de estabilização “natural” como explicado acima. As leveduras são menos sensíveis ao SO2, porém ele é capaz de inibir ou alentecer o metabolismo das leveduras selvagens em favor das selecionadas pelo enólogo.

Opção biodinâmica: nas degustações habituais o SO2 tem sido vilanizado, mas devemos lembrar que as doses preconizadas estão de acordo com as orientações da OMS e que mesmo na opção de vinhos de cultura biodinâmica, seu uso não é proscrito, ao contrário, é admitido mas sempre obedecendo a filosofia destes produtores que pregam “a ausência total de SO2 livre no momento do consumo”. Como já vimos, o SO2 para ser inofensivo deve se combinar com outras moléculas e a biodinâmica preconiza doses que favoreçam a máxima combinação do anidrido sulfuroso para que não sobre nada ao se abrir a garrafa.

Por isso as doses são em torno de 7,5 gramas por hectolitro (g/Hl) de mosto. Para que se tenha uma idéia de proporção, as doses admitidas pela União Européia e o Brasil são de respectivamente 30 e 35g/Hl.

Mas o SO2 não tem somente estas propriedades, ele é muito importante por ser um potencial facilitador da extração de compostos fenólicos dos vinhos, momento fundamental na elaboração de vinhos tintos.

Princípios de extração fenólica: a maior parte da alma dos grandes vinhos tintos estão na sua concentração de cor e taninos, ou seja, nos compostos fenólicos que são substâncias químicas que contém um ou diversos núcleos benzênicos (aromáticos) com pelo menos um grupo hidroxila livre ou associado a outras funções, como os éteres, ésteres e heterosídeos.

Somente os vegetais e os microorganismos são capazes de sintetizar núcleos aromáticos e estes vão conferir ao vinho tinto sua cor, sabor, textura e potencial de longevidade na forma de taninos e antocianos.

Os fenóis das uvas estão compartimentados, ou seja, não estão livres dispersos no suco, mas dentro de vacúolos no interior da polpa e também nas paredes das cascas e das grainhas. Para otimizar a sua extração são necessárias algumas condições como um pH adequadamente ácido, não mais do 3,7, a presença de um solvente que é o próprio etanol que se forma durante a fermentação e finalmente de uma substância capaz de atuar desestabilizando a integridade das membranas celulares e é aqui que entra o anidrido sulfuroso pois ele age de modo eficaz provocando uma alteração da continuidade da membrana e facilita o escoamento dos conteúdos vacuolares, atuando de certa forma como um solvente também.

Não é possível extrair a totalidade dos compostos fenólicos das uvas sendo que parte deles fica retido nos bagaços e são de difícil extração, todavia na indústria de utilização de sub-produtos dos vinhos os bagaços podem ter ainda algum potencial de extração de taninos e de antocianos através do que se conhece por “maceração sulfítica”.

Fazer vinhos sem a adição de anidrido sulfuroso é possível, mas exige muita precaução, em vista do imenso potencial oxidativo do mosto. Entretanto podemos comprovar que o uso racional desta substância pode trazer excelentes resultados nos nossos vinhos.

Concluindo, a não utilização do SO2 pode terminar por exigir o uso de técnicas “piores”, tais como a utilização de ácido ascórbico, sorbato de potássio, filtração estéril e pasteurização, todos eles podendo causar alterações de sabor ou algum grau de toxicidade.

É impossível conceber um vinho sem nenhum traço de SO2 porque as próprias leveduras produzem esta substância como parte de seu metabolismo. Este SO2 das leveduras é chamado de “SO2 endógeno”. Por isso certos vinhos de certificação orgânica indicam no rótulo a frase “não foram adicionados sulfitos” juntamente a outra dizendo “sulfitos ocorrem naturalmente” (que é o sulfito endógeno).

Como última curiosidade: a elaboração do vinho libera o Acetaldeído, que sem a presença do SO2, geraria um imponente odor de cidra.

Texto de autoria de André Logaldi.

Crédito das imagens 1. Wikipedia  2. coastalliving.com  3. devinewinesblog

(Visited 38.020 times, 38.024 visits today)

9 thoughts on “Anidrido Sulfuroso – Sulfitos: um bem ou um mal?”

  1. Jeriel, mais uma perguntinha sobre a conservação do vinho:

    No final do ano passado um amigo me trouxe duas garrafas do Viña Real Gran Reserva 2001, da CVNE (Rioja). O problema é que eu não consegui buscar as garrafas assim que elas chegaram. Elas permaneceram em um quarto da casa dele, em pé, durante aproximadamente 3 semanas. Depois eu busquei e pus as garrafas na minha adega.
    A mãe dele me disse que o quarto é relativamente fresco ao longo do ano (devia estar em torno de uns 23 graus), e que a janela praticamente nunca abre. Então a garrafa não chegou a ficar exposta à luz solar ou ao calor excessivo, mas deve ter recebido alguma luz elétrica. Você acha que isto pode ter deteriorado o vinho de alguma forma? Se não, você acha que o vinho tem condições de envelhecer por pelo menos mais uns 5 anos na adega? A garrafa em pé pode ter sido prejudicial nestas 3 semanas, por não manter a rolha molhada?

    Abraço!

    1. Rubão,

      Você é bastante cauteloso e isso é bom sinal. O período é muito curto para que exista alguma deterioração. Para haver algum prejuízo, aleatoriamente menciono o período de três meses em pé ou um pouco mais. O problema é qdo. ocorre tudo junto: ficar em pé, luz solar direta e consequentemente muito calor.Aí sim o vinho perderá suas propriedades. Anos atrás, a jornalista Suzana Barelli fez uma reportagem interessantíssima. Distribuiu 10 garrafas de um bom Cabernet Sauvignon Chileno, vinho reconhecido por sua robustez e longevidade e distribuiu para 10 pessoas que tinham que armazená-la nas dependências de casa pré-determinadas por ela por tempo certo. O pior vinho foi o que ficou embaixo da pia junto com detergente, sapólio,etc…e agora vem a surpresa: o melhor foi o conservado na geladeira que desbancou o que estava corretamente acondiconado na adega climatizada.
      Já tomei muito vinho de guarda cuja garrafa estava em pé na loja (é o caso dos vinhos que ficam consignados nas lojas e depois são devolvidos ao importador) que estava palatável.

      Obrigado pela participação

      att

      Jeriel

  2. Boa tarde Jeriel
    Por gentileza, se o Sr. puder me responder.
    1)Você acha que um vinho suave ou Demi seco…submetido a um banho Maria (arrolhado) a 50 graus Celsius por 10 min. Você acha que prejudica o vinho em relação as suas características e estabiliza para não formar vinagre? No caso, seria uma alternativa para não usar o SO2.
    2) Qual seria alternativa para não usar o SO2?
    3) Um temperatura média de 25 graus com variação de 1 ou 2 graus para mais ou para menos pode ser considerado uma boa condição para conservação do vinho…aliado com baixa luminosidade e as garrafas deitadas?

    1. Alessandro, o Enólogo Vinicius Conde vai te responder:

      Primeira questão:
      Essa não seria uma possibilidade viável. Primeiro que você estaria submetendo o vinho a uma temperatura elevada que prejudicaria as características organolépticas do mesmo, mas que ao mesmo tempo não é uma temperatura de pasteurização e que seria suficiente para desnaturar todos os organismos vivos presentes, como leveduras e bactérias. Então não resolveria de nada e você ainda estragaria o vinho e poderia ainda correr o risco de vazamentos e entrada de água no vinho.

      Segunda questão:
      É importante dizer que o SO2 já é produzido naturalmente durante a fermentação, é um dos subprodutos da mesma, mas a quantidade que é produzida não é na grande maioria das vezes suficiente para proteger o vinho por completo por grandes períodos, e por isso se adiciona mais de forma calculada para completar o que já está ali. Então não existe vinho sem S02, existe vinho que não o adiciona, e só mantém o que já foi produzido.

      Dito isso, aqui no Brasil, só é permitido dois conservantes, o Dióxido de Enxofre (que é o Anidrido Sulfuroso ou S02) identificado por INS 220 ou o ácido Sórbico, que é o INS 200 e que é utilizado principalmente em vinhos com alta concentração de açúcar pra evitar a refermentação por bactérias ou leveduras, mas ele não tem propriedades antioxidantes e aumenta a acidez total do vinho, sendo ele uma alternativa para o SO2, porém com essa ressalva sobre a acidez total e sem a mesma eficácia. É possível inclusive se utilizar os dois simultaneamente.

      3) Resposta de Jeriel:

      Manter o vinho nessas temperaturas irá cozinhá-los. O ideal será mantê-los numa adega climatizada a 18°C ou no máximo a 23°C
      numa adega normal. Nunca acima dessa temperatura.

  3. Sobre a questão do uso de sulfitos no vinho, sou fã de vinhos chilenos, de uma marca específica que acredito que até contenha anidrido sulforoso, mas nunca me fez mal e no sábado adquiri uma marca nova que também continha anidrido sulforoso, provavelmente em níveis superiores a outra marca, que me levaram basicamente para o pronto socorro. Entre os sintomas vômitos e diarréia, minha garganta parecia que iria incendiar. Confesso que agora fiquei com pé atrás em relação aos vinhos que possuem esse conservante. Espero encontrar uma marca boa e que não faça uso do mesmo.
    Também descobri nesse dia que o bendito anidrido sulforoso seria dióxido de enxofre, nosso corpo é incapaz de sintetizá lo.

Deixe um comentário para Jeriel Cancelar resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *