” Podem não ser os primeiros lugares que lhe venham à cabeça quando se fala de vinho. E há mesmo um porquê. São países de maioria islâmica, religião que rejeita o consumo de álcool. Entretanto há uma história rica ali. Na Turquia, por exemplo, foi feito o primeiro vinho da humanidade (na verdade há uma disputa com Armênia e Geórgia para definir essa paternidade). Pois na Turquia e nos países árabes em torno do Mediterrâneo – a Turquia não é árabe, é bom lembrar – há regiões com grande potencial vinícola e vale a pena dar uma olhada no que está acontecendo lá. Quem sabe um dia não será comum pedirmos vinho branco do Marrocos ou tinto turco?

Vamos começar pelos dois extremos geográficos da nossa empreitada: a Turquia, por um lado, e o Marrocos, por outro.

A Turquia tem a quarta maior área plantada de uvas no mundo, mas apenas uma ínfima parte dela, menos de 3%, é dedicada à vitivinicultura. O irônico é que até a chegada do islã, por volta do século VII, os vinhos de maior qualidade do mundo vinham dali. Nos anos 20 do século passado, quando Kemal Ataturk fundou a república laica turca, uma de suas medidas de ocidentalização do país foi tentar convencer as pessoas de que era bom beber vinho. Ele criou diversas vinícolas estatais, que tinham entre outras funções assegurar a sobrevivência de castas autóctones.

Hoje, com o fim do monopólio estatal e o crescente interesse de uma nova geração de turcos, há alguns empreendedores bastante promissores. Os principais produtores são Doluca e Kavaklidere. Da Doluca se destacam os brancos da linha Sarafin, que usam castas francesas, como chardonnay e sauvignon blanc, e alguns Villa Doluca. Já a Kavaklidere privilegia castas da Anatólia, como bogazkere e kalecik karasi – esta casta produz vinhos leves, comparáveis a vinhos de Beaujolais. O tinto da Kavaklidere com a casta oküzgozü custa cerca de US$ 10 e surpreende, cheio de fruta, ameixa, cereja, bem vivo.

Um fenômeno interessante que vem acontecendo no país é a emergência de vinícolas butique. A Gali, que tem vinhedos na península da Galípoli, aposta em cortes bordaleses. Seu cabernet franc com merlot tem taninos finos e se mostra de grande frescor.

No geral, os vinhos turcos de boa qualidade são encontrados por não mais do que US$ 20. As vinícolas estão de olho no mercado externo não só porque veem nele um interesse por novidades, mas porque também vêm enfrentando dificuldades com o governo do partido AK, de tendência islâmica, que adotou várias medidas restritivas ao álcool ultimamente, proibindo a venda on-line e quase acabando com os anúncios em locais públicos.

Na outra ponta do Mediterrâneo há mais uma surpresa: os bons e frescos vinhos brancos do Marrocos.

Trabalhador marroquino colhendo uvas

A indústria vinícola marroquina se desenvolveu muito no início do século passado, quando o país se tornou um protetorado da França. Experts no assunto, os franceses desenvolveram a região de Meknés, no meio da cadeia de montanhas Atlas. Ali, os solos são propícios e há um clima especial, com influência do Oceano Atlântico.

Com a independência, em 1956, as vinícolas entraram em franca decadência. Os franceses tiveram muitas de suas vinícolas expropriadas e, em retaliação, os europeus proibiram a importação de vinhos marroquinos. Só nos anos 90, quando o turismo se transformou numa das principais fontes de renda do Marrocos, é que o governo “fez as pazes” com os europeus e permitiu a formação de joint-ventures com vinicultores franceses.

Hoje, o Marrocos é a principal aposta vitivinícola do Norte da África.

Um exemplo de Ksar, boa produtora de Mknés

Alguns dos vinhos de maior destaque lembram muito os do Novo Mundo. O S de Siroua, da região de Rommani, é um chardonnay com 14% de álcool que passa por barris novos de carvalho americano (US$ 30). É um vinho cheio, para dizer o menos, e não faz feio diante da cozinha marroquina, com seus temperos e sabores vivos.

Mas o que chama mesmo a atenção é a região de Meknés, que produz tanto vinhos tintos, como rosés e brancos. O Ksar é um exemplo reconhecido, com vinhos rondando o preço de US$ 18 e que lembram alguns vinhos do Rhône.

Outra atração do Marrocos são os “gris”, normalmente feitos com uvas cinsault. Ficam num meio termo entre os brancos e rosés e têm uma vocação clara de acompanhar pratos de frutos do mar.

Ao lado do Marrocos, há outro país com forte influência do setor vitivinícola francês: a Argélia. A independência argelina veio após uma sangrenta guerra contra a França nos anos 60. Apesar de já ter sido o maior exportador de vinho do mundo – a Argélia produzia vinhos simples que eram usados em blends na França, principalmente -, hoje a produção claudica. Há projetos para revigorar áreas tradicionais, como Médéa, mas ainda há pouco pode ser apontado como destaque na Argélia.

Trabalhadores em vinhedos de Kefraya, no vale do Bekaa, no Líbano, região de vinhos reconhecidos

Na Tunísia, os esforços têm sido mais bem recompensados. Um dos projetos mais interessantes é da vinícola italiana Calatrasi, que planta em solo tunisiano e vinifica na Sicília. Como no Marrocos, os tunisianos têm uma vocação para os “gris”, mas apostam em castas como carignan, grenache e mourvèdre – bem estilo Rhône também.

O Egito merece uma passada apenas rápida. Ali, a vinícola Gianaclis, um projeto do grupo cervejeiro Heineken, tem praticamente um monopólio. Dos vinhedos do delta do rio Nilo saem pelo menos um rosé relativamente interessante, o Leila.

Seguindo para o Líbano, podemos falar de clássicos como Château Musar e Château Kefraya.

O Kefraya, um corte de cabernet sauvignon e syrah, é untuoso e tem notas minerais e de especiarias, além de muita fruta vermelha. No Brasil, é importado pela Zahil (R$ 143).

O Musar é resultado da obstinação de um homem: Serge Hochar. Ele nunca deixou de produzir no vale do Bekaa, apesar das duas décadas de guerra civil em seu país. Foram esforços recompensados. O Musar, um corte de cabernet sauvignon e cinsault, é equilibrado e encorpado. No Brasil, é vendido pela Mistral (R$ 194, o tinto 2004). O Musar Jeune (R$ 95) se define como mais moderno, mais fresco. O Musar Jeune Rosé (R$ 92,50) é agradável e gastronômico.

Por fim, merece uma menção um projeto na Síria, o Domaine Bargylus, que acaba de chegar ao mercado europeu. Ele é mais do que um vinho, é um sobrevivente da guerra civil síria.

O projeto é dos irmãos sírio-libaneses Saadé, em Latakia, no noroeste do país, onde eles têm vinhedos de cabernet sauvignon, syrah, merlot, chardonnay e sauvignon blanc. O Bargylus pode ser encontrado em Londres por 33 libras e é considerado o primeiro vinho sírio de qualidade internacional.

Mais do que um vinho, o Bargylus fecha essa série como um símbolo do esforço humano e da sua vontade de produzir vinhos. E como um atiçador da curiosidade de quem gosta de vinhos.

O crítico de vinhos do Jornal Valor Econômico, Jorge Lucki está de férias. A sua coluna de vinhos volta a ser publicada em fevereiro. Matéria de Rodrigo Uchoa, direto de Istambul – Turquia

Leia mais em:

http://www.valor.com.br/cultura/2955780/pequenas-surpresas-com-rotulos-islamicos#ixzz2HPs7mhoF

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