Turquia Paisagem - Bosforo

            Acho que tomei como pretexto a fantasiosa novela da Glória Perez, Salve Jorge (que a gente acaba sempre dando aquela espiada básica, ainda que não concorde ou acredite em uma linha daquele folhetim – mas novela de TV é pra isso mesmo), para tirar do fundo da estante um livro, fascinante, sério, profundo, mas ao mesmo tempo deliciosamente ‘palatável’, apetitoso de se ler. Livro da arqueóloga, museóloga e historiadora, a carioca Fernanda de Camargo-Moro, e que foi publicado, pela Record, há cerca de 6 anos.

“A Ponte das Turquesas”. Sim, as pedras que dão o nome aquele país, o mesmo de onde surgiu o nosso querido santo guerreiro, São Jorge – então de Capadócia (na Turquia), também o santo patrono da igreja da Inglaterra, e hoje, no Brasil, além do sincretismo na Umbanda, o padroeiro do Corinthians e até o líder de audiência no horário nobre da telinha.

Turquia - S. Jorge

A historiadora, que também é consultora oficial da ONU e da Unesco, é nascida no Rio de Janeiro, com mais de 30 anos dedicados a pesquisas em sua especialidade: as rotas do Oriente, tendo já publicado mais de 7 títulos sobre o assunto. Em a Ponte das Turquesas, a autora faz um detalhado relato histórico, cultural e gastronômico, e nada enfadonho, de uma das cidades mais fascinantes do planeta. Fundada como Bizâncio, depois se torna Constantinopla, a última capital do Império Romano, até voltar ao domínio turco, em 1453, e sua majestosa transformação em Istambul.

Sempre envolta em mistérios insinuantes, tão desejáveis como os véus sedosos das odaliscas e concubinas dos sultões, que povoaram os suntuosos palácios de Istambul – e a imaginação do Ocidente – por mais de 5 séculos, toda a história de uma cultura tão marcante, como a dos impérios bizantino e turco-otomano, destrinchada neste livro, é muito mais do que simples ‘fatos históricos’. Fernanda de Camargo-Moro, em seus magníficos livros, sempre se incumbe em abrir as esquecidas e insondáveis portas das cozinhas, pelos países e povos aos quais viaja e dedica seus estudos – assim foi em Arqueologias culinárias da Índia e em Veneza: o encontro do Oriente com o Ocidente, entre outros.

Turquia - in_the_harem-

Em “A ponte das Turquesas”, as tradições culinárias daquele mundo faustoso e palaciano, dos tempos do Serralho, ou Palácio Topkapi, o último harém de Istambul, vão sendo desveladas gulosamente, como neste relato de um funcionário palaciano, que serviu ao sultão Mehmet V, até a virada do século XX. “Centenas de funcionários, oficiais e servidores atualmente vivem nos entornos do palácio….Em um jantar servido fora do prédio, vi numerosos criados que corriam em todas as direções, carregando em suas cabeças grandes bandejas de madeira cheias de pratos. O número de chefes de cozinha e cozinheiros assistentes acredita-se ser superior a 200. Num cálculo grosseiro as despesas de funcionamento do palácio são de aproximadamente L 5000 por dia”.

E no que gastavam tamanha exorbitância as cozinhas da Corte turca? Apenas a cozinha pessoal do sultão tinha em sua lista de compras diariamente: 10 pombos, 33 kg de açúcar, 6,5 kg de café, 4 bolsas de iogurte, queijo kaskaval, frutas variadas, avelãs e nozes!… Dia após dia! E provavelmente só para o desjejum, pode-se concluir ao ler sobre outras listas das despensas palacianas.

Turca - Massa folhada

Em registros de datam do século XVI, o orçamento anual das cozinhas do palácio contabiliza gastos de “20 milhões de akce de ouro”, revertidos nas seguintes compras: 956.800kg de arroz do Egito; 3.458 kg de açúcar do Egito; 2.500 kg de grão de bico; 20 mil ovelhas da Valáqui e Moldávia; 9.500 kg de mel da Valáqui; 10.400kg de sal; 19 mil galinhas e 3 mil perus.

Fora isso, a culinária do país das turquesas, ao menos a das classes dominantes, incluía esturjões, caviar, camarões, ostras, os famosos sorbets (foram eles que inventaram a delícia gelada) feitos com as frutas da região e perfumados com água de flores, e mais uma variedade impressionante de pães, massas muito finas (outra invenção turca: a massa folhada), incluindo um pão tipo meia-lua, de camadas sucessivas de massa e manteiga, ou seja, o famoso “croissant”, séculos mais tarde, batizado de vienense. E mais um famoso ravióli, ali chamado de “manti”, recheado de carne moída ou de iogurte, que vem desde a civilização nômade dos desertos até a cozinha turca dos dias atuais.

Um parágrafo deste livro talvez sintetize perfeitamente o “dna” da cozinha do lindo país entre o Oriente e o Ocidente: “A alimentação greco-romana, baseada em pão, vinho e óleo de oliva, por meio dos otomanos, encontrou aquela baseada em arroz, açúcar e manteiga, e juntas passaram a caminhar pela culinária otomana dos sultões. Esta marcou muito os Bálcãs e toda a Europa Central, chegando até a Rússia”.

Turquia - cena de harem

De tudo, menos vinho!

Apesar de estarmos diante de uma das cozinhas mais luxuriantes do planeta, aqui também é o território de uma religião que, a certa altura, baniu o vinho – e qualquer outra bebida alcoólica – para as profundezas do ‘inferno e do pecado’… Mas ali, como em qualquer outro sistema tirânico e de proibições, há sempre uma via de transgressão e exceção para os poderosos. Fernanda comenta sobre os documentos analisados: “ Nos documentos jamais aparece previsão de bebidas alcoólicas, mesmo sabendo que alguns sultões bebiam bem, como Selim II e talvez o próprio Mehmet Fatih, e se sabe que outros foram verdadeiros alcoólatras (…) Como podiam dissimular a compra de bebidas proibidas? (…) No entanto aparece anotada a profusão de bebidas importadas pelas embaixadas estrangeiras instaladas em Gálata; estaria ali um caminho para presentear as autoridades? Uma forma de corrupção”?

A Ponte das Turquesas reúne ainda mais de 50 receitas do que há de mais tradicional e típico na culinária da Turquia, desde receitas majestosas, saídas das cozinhas dos palácios e haréns, com séculos de história, às receitas mais populares ainda praticadas nos dias de hoje.

Delas escolhi uma ‘jóia’ nesse receituário de delícias e maravilhas contido no livro – e  que deve estar afixado na porta daquele paraíso descrito por Maomé…

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Trata-se de uma receita encontrada no cardápio de inverno do Topkapi e também nos festejos de 1539, transcrita por um certo Chirvâni, três séculos depois.  Chama-se “Mahmûdiyye”. E apesar do aparente glamour é receita fácil e certeira no preparo, tanto quanto no sucesso que vai fazer na mesa do leitor contemporâneo.

E só mais um detalhe: não hesite em acompanhar sua galinha ‘mahmûdiyye’ com um belo vinho tinto, bem redondo, de taninos já bem amaciados. Ou mesmo um rose, bem fresco, sutil.

Enfim, Gule-gule!!

Mahmûdiyye – para 3 a 4 pessoas

  • 1 galinha média; 90g de mel; 1 colher de sopa de amêndoas cortadas em lâminas fininhas; 12 damascos secos cortados em lâminas; 1 cacho de uvas, descascadas e sem sementes; 400g de vermiceles (espaguetis bem fininhos – ‘cabelos de anjo’); manteiga e sal
  • Numa caçarola de bom tamanho cozinhe a galinha em água salgada. Retire depois a galinha, desosse, corte em pedaços pequenos, coloque numa tigela e reserve, deixando em separado a água do cozimento e os pedaços de galinha. Esquente o mel, juntando o caldo da galinha enquanto adiciona as uvas, os damascos e as amêndoas fatiadas. Junte os pedaços de galinha e misture. Numa frigideira esquente a manteiga e refogue os vermiceles até que fiquem dourados. Coloque-os sobre a galinha com molho, que já deve ter esfriado. Misture e deixe repousar.

Turco - Mercado

A colunista Jezebel Salem
A colunista Jezebel Salem

 

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