Bacchante - com jarra - pintura

Então, o coquetel pelo lançamento do livro “Dicionário Gastronômico – Vinhos e suas Receitas”, de minha autoria e do chef  Christian Formon (Editora Boccato/Gaia), finalmente aconteceu!! Coincidiu com a semana da Expovinis, mas mesmo com tal  “concorrência” no palco da enofilía, muitos admiradores do assunto (e, quem sabe, dos autores) até lá se dirigiram, numa linda noite de lua-cheia, para a livraria Mundo Gourmet, na tradicional Rua Augusta, livraria que fica num agradável boulevard, em galeria à céu aberto, para terem o livro autografado, com direito a dedicatória e tudo mais…

A jornalista Jezebel Salem
A jornalista Jezebel Salem

O tudo mais incluiu: um clima receptivo, festivo, todo mundo à vontade, muito burburinho, sorrisos luminosos, caras e bocas, flashes, entrevistas, beijinhos e abraços mil e, o que era fundamental: muito vinho bom e comidinhas extraordinárias, literalmente!… – o buffet do Christian Formon, como não podia deixar de ser, estava impecável!

Os autores Jezebel e Christian Formon
Os autores Jezebel e Christian Formon

Por isso desta vez, na coluna do cada dia mais acessado Blog do Jeriel, a aqui “Bel-prazerconvida a um brinde, ou melhor, um ‘aperitivo’ exclusivo: a publicação de um parte do capítulo de introdução do livro, que conta a história do vinho, dos deuses mitológicos até os dias de hoje. “Das vinhas do Olimpo ao mercado global”. É claro que não vou contar aqui toda essa emocionante saga, porque não haveria espaço, nem cabimento… É mesmo para dar vontade e continuar a leitura de modo “analógico”, quero dizer, no próprio livro.

Lancamento livro - na livraria

A cada nova letra do Dicionário dos Vinhos, sempre há uma citação célebre, dos grandes sábios, escritores ou pensadores da humanidade, o que eles falaram sobre o vinho. Na parte inicial, a da História, eu escolhi uma citação de Nietzsche, extraída do “Nascimento da Tragédia” – onde o filósofo exorta à volta aos valores das civilizações greco-romana.

Baco bebe

Uma contagiante dádiva dos deuses

 

A tragédia conta acerca das mães do ser, cujos nomes são: loucura, vontade, sofrimento. Sim, acreditem na vida de Dioniso e no renascimento da tragédia! O tempo do homem socrático já passou: façam e usem coroas de hera, peguem nas mãos o bastão de Tirso e não se espantem se o tigre e a pantera se deitarem carinhosamente a seus pés.

Agora tentem ser seres da tragédia, pois deverão ser salvos. Vocês devem levar o cortejo dionisíaco da Índia para a Grécia! Vistam as armaduras para enfrentar árduas batalhas, mas acreditem nos milagres do seu deus!

             F. Nietzsche

Baco e uvas - escultura

Todas as mitologias de civilizações remotas, criadas pelo homem como tentativa de explicar o mundo e a própria trajetória e condição humana neste mundo – de natureza incompreensível e ameaçadora, sempre oscilando entre o sublime e o infame – todas elas tornavam sagrados e atribuíam a forças superiores, divinas e invisíveis, os fenômenos incontroláveis a que se sujeitam as leis da vida.

Uma dessas leis, a sobrevivência, feita de vida alimentada de outra vida, conduziu esse homem do nomadismo até sua fixação em terrenos agricultáveis. Logo a vinha tornou-se um dos primeiros símbolos das civilizações assentadas na agricultura; assim como também, a bebida que dela se obtinha, com seus e efeitos de bem estar, euforia e ‘transcendência’, fez-se um inequívoco elo entre o sagrado, o extraordinário e o humano, um veículo ou comunicação entre o homem e o divino. Como se pode concluir (e achados arqueológicos atestarem), essa ligação atravessa milênios: parece que a humanidade bebe vinho há mais ou menos sete mil anos – e atribui suas causas e conseqüências, gloriosas ou não, ao capricho dos deuses…

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Heródoto, no séc. V a.C., relata que ao redor de todo o Mediterrâneo Oriental, já se fazia vinho há pelo menos 3 milênios e que da bacia de Anatólia os fenícios o levavam até a Grécia, Sicília e Ibéria . Não é de se estranhar que essas primordiais culturas atribuíssem aos deuses a origem e a dádiva de tal bebida. Mesopotâmia, Pérsia ou Fenícia, o Egito, a Grécia e depois Roma, todas são civilizações plenas de lendas, com seus deuses que, entre outras benesses, entremeadas dos tormentos de praxe, doaram a videira e ensinaram o vinho ao homem. Até mesmo os hebreus com o advento do monoteísta judaísmo, e mais tarde seguidos do cristianismo, não deixaram de se servir do poderoso simbolismo da videira e do vinho, até como representação do sangue da divindade em pessoa, e da própria vida.

Com um histórico e uma biografia dessas, ao menos do ponto de vista mítico e até filosófico-teológico, não há como escapar: estamos mesmo diante de uma bebida literalmente divina! E mesmo nos dias atuais, em nosso materialista e prosaico mundo pós-modernidade, ainda faz todo o sentido referir-se a este ou aquele vinho, recém descoberto na revista Wine Spectator, ou pelo site, ou na loja virtual da importadora de sua confiança (e degustado com todas as reverências e prazeres que tais vinhos modernos são capazes de despertar), como “um vinho dos deuses” ! E ainda exclamar: per Bacco!…

Bacchante - com jarra - pintura

E falando em Baco, e para resumir toda a galeria de deuses que se dedicaram ao fundamental artigo, essa divindade, que na mais poderosa civilização da antiguidade, a romana, substituiu a Dionísio, aquele da célebre constelação mítica dos gregos antigos, ele ajudou e muito a humanidade a se afastar de suas mazelas cotidianas, além de reuni-la em festivos e solidários eventos de alegria, cantos, folguedos, teatro e muita arte, como poucos haviam conseguido. E fica claro que o vinho, artigo de sua competência, tinha tudo a ver com isso. Pena que o triunfo, ao final, ficou todo com seu antagonista, Apolo – e que nossa civilização atual seja absolutamente fundamentada nessa cinzenta disciplina apolínea…

Mas considerações filosóficas à parte, o fato é que Dioniso/Baco, além de deus libertador pela embriaguez e pela transcendência – movida a uvas fermentadas, é verdade – representava não apenas o lado criativo, vibrante e gregário da humanidade, como também o aspecto da renovação permanente da vida e da fertilidade, da Natureza em seu ciclo das estações. Durante os famosos cortejos a Dioniso, celebrados ao final do inverno ou com a chegada da primavera, multidões de anônimos sentiam-se mais próximos aos deuses, cantando, seguindo em procissão, ao som de tambores e dançando embriagadas, enquanto os cântaros eram constantemente abastecidos de vinho, em meio a algazarra de berros e instrumentos musicais… A cena é até que familiar ao brasileiro contemporâneo – porque quis Dioniso, ou Momo, que a tradição chegasse até aqui, pontualmente, lá por meados de fevereiro. Per Bacco!

Aquelas festas, no Santuário de Delfos, a partir de 582 a. C., duravam igualmente quatro dias e quatro noites. A partir do segundo dia, a bebedeira era generalizada, quando escravos, miseráveis, mulheres e até crianças, todos comungavam do desenfreado frenesi comunitário. Jogos de máscaras, ditirambos, cantos e representações satíricas e cômicas, tudo acontecia. É tudo verdade – e documentado pelos célebres historiadores da antiguidade greco-romana, pra quem quiser ver.

mapa franco-gaules

Os donos do mundo – e do vinho

Transferindo-se a Roma, o culto a “baca” – palavra latina que designava uva –  arrebatou muitos adeptos e principalmente adeptas, as bacantes; mas também se ganhou em liberalidades, loucuras e orgias, perdeu no que possuía de espiritualidade e senso artístico, quando na Grécia. Parece que diante de completa liberdade – e vinho à vontade – aquelas sociedades não sabiam se comportar a altura e os excessos e violências se tornaram incontroláveis, a ponto de o Senado romano decretar a proibição da folia “Bacchanalibus” , em 186 antes da era cristã.

Mas se a folia desenfreada havia sofrido certa vigilância, o fato não significava que o Império romano tenha ficado mais sóbrio ou que o comércio do vinho entre suas distantes províncias declinaria – muito pelo contrário. A viticultura sempre foi de capital importância para a civilização dos romanos, que, assim como outros traços culturais, ao início foi importada e aprendida dos gregos e, num segundo momento, é  por eles super desenvolvida, otimizada em todos os aspectos. A literatura sobre o assunto é ampla, sendo fartamente documentada (e graças a esses escritos latinos, após o declínio do poderio romano, os monges que deles se cercaram puderam reerguer tudo que os romanos haviam legado): são tomos e mais tomos de autores latinos se debruçando sobre minúcias em relação a técnicas de cultivo da vinha, tipos de poda, colheita, prensagem, armazenamento,  envelhecimento do vinho, etc.

Eles foram tão bons na agronomia da vinha que os modos de cultivo desenvolvidos por esses romanos permaneceram os mesmos e sem grandes novidades quase que até o início do século passado! Não é de se espantar, em se tratando de um povo cujos intelectuais registravam, em alto e bom latim, considerações tais como: “Se me perguntarem qual entre os bens da terra vem em primeiro lugar, eu direi que é a vinha”  – escreveu Catão; ou como assegurou Columela: “Consideramos, por ser justo, a vinha acima de quaisquer outras espécies”.

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Francos e gauleses – invenção genial e definitivo amor ao vinho

 

 A vinha também deu bons motivos à belicosas contendas dos romanos dentro das novas províncias conquistadas; a ponto de Júlio César se ver obrigado a empreender mais algumas de suas guerras, lá pelos lados do Ródano, na Gália, contra uma população local de camponeses e rebeldes incivilizados, que vinha demonstrando um entusiasmo exagerado em relação a todo aquele vinho que por lá trafegava – cobrando impostos absurdos ou retendo para consumo próprio aquela mercadoria de seu interesse.  Há registros que a vinha gaulesa se expandiu de tal maneira que passou a concorrer com os vinhos de Roma, a ponto de o imperador Domiciano, no ano 92 da era cristã, ordena a devastação de mais da metade das plantações nas províncias da Gália e proibir novos cultivos, a não ser em propriedades de colonos romanos.

O fato é que esses gauleses haviam trocado com muito afã a desbotada cerveja celta pelo vinho dos romanos, com altos índices de consumo e ainda preterindo qualquer outro tipo de agricultura, como a do trigo, para se ocuparem apenas dos vinhedos. Não raro, são por isso descritos pelos historiadores latinos com palavras nada enaltecedoras – de beberrões inveterados a “raça ávida por vinho e em estado de embriagues permanente”. Ademais os romanos sempre misturavam água ao vinho antes de bebê-lo, mas, para seu horror, os ‘bárbaros’ da Gália só bebiam-no puro! Não demora muito e por quase todo o território da Gália irá crescer uma vasta plantação de videiras e eles passarão a produzir seu próprio vinho, livrando-se da importação romana.

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A solidez de líquidas alianças etílico-políticas

Graças a esse ardor gaulês pela bebida de Baco, as populações de localidades como Bordelais, Lutécia (Paris), Loire, Lyon e Marselha, ainda nos tempos da dominação de Roma, e entre um pileque e outro, conseguiram desenvolver técnicas de agricultura, com muita arte e engenho, experimentaram e aprimoraram novas castas de uva, inventaram variações aromáticas e saborosas, misturando ervas, plantas e especiarias ao vinho, e ainda criando novas maneiras de conservar e transportar vinhos: esses gauleses aprimoraram seus antigos tonéis de madeira para cerveja e, no séc. III, eles irão aposentar de uma vez o ‘dolia’, os grandes jarros de cerâmica que armazenaram e transportaram o vinho ao longo de toda antiguidade.

Daí em diante o mundo irá assistir ao crescimento mercantil e a uma poderosa cadeia de produção do vinho, pelos solos da Gália, e que trará na dianteira os descendentes daqueles “beberrões” e “mal comportados” gauleses, sempre dispostos a um brinde a mais, como também a constantes aprimoramentos na vitivinicultura, num grau que o mundo jamais havia visto até então………………. …………………………………………………………………………..  (etc., etc., etc.,).

A colunista Jezebel Salem
Jezebel Salem

Jezebel Salem, jornalista por profissão que já atuou em áreas diversificadas, como cultura e economia, mas que logo se especializou no hoje chamado jornalismo gastronômico. Foi repórter e redatora em vários canais da imprensa, como os jornais O Estado de São Paulo, Gazeta Mercantil, Shopping News, Jornal da Tarde, entre outros, inscrevendo-se entre os pioneiros dessa especialidade que ao longo dos últimos 25 anos, tanto espaço e entusiastas conseguiria conquistar. Participou das primeiras edições da revista Gula (surgida no início dos anos 90) e assinou artigos em várias publicações do gênero.

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2 thoughts on “Coluna Ao Bel-Prazer – Das vinhas do Olimpo ao mercado global”

  1. Querida, por conta da feira Baselworld na Suiça não pude comparecer a seu evento.
    Fiquei feliz ao ver as fotos, a comprovação do sucesso.
    No próximo não faltarei.
    Beijo
    Stela

  2. Querida,
    você está sempre presente, mesmo que do outro lado do Atlântico. E além do mais, que motivo mais chic… feira Baselworld, na Suiça!… Só mesmo a pluri-internacional Stela Alves!!!… bjs, saudades.

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