A história do vinho conta parte da história do mundo sob vários aspectos e a história do mundo explica muito das tendências de produção e consumo dos vinhos. A expansão do império romano no ocidente inaugurou e desenvolveu a vitivinicultura em diversos pontos do continente europeu. O Cristianismo e, especialmente, Catolicismo Romano, cujo ritual eucarístico associa o vinho ao divino validou seu consumo e estimulou o aperfeiçoamento da produção de vinhos nos mosteiros, herança que até hoje remete ao que há de melhor no refinamento da produção de vinhos. A localização próxima a potenciais portos e sistemas viários permitiu o êxito de algumas regiões, favorecendo a troca comercial além-fronteiras, como a comunicação entre Bordeaux e a Inglaterra. Muitos são os exemplos que mostram que a prosperidade de alguns vinhos depende de muitos aspectos, que não se justificam tão só pelo terroir, pelo gosto do consumidor, pela influência cultural e sim pela junção de diversas características.
Num mundo globalizado, o gosto regional talvez tenha sua importância minimizada, mas por muito tempo não. As tradições culturais que demarcavam uma identidade local eram mais preservadas e seguiam com seus nativos para onde fossem. Alguns gostos se fundem, outros se sobrepõem. Quanto mais poder, mais hegemonia na determinação do gosto das gerações futuras. Este aspecto vai ser determinante na vocação gustativa dos vinhos de cada região.
Por muito tempo, o vinho nobre da França foi o vinho branco, associado à referência exemplar da Borgonha. O clarete, um vinho tinto mais claro (entre o tinto e o rose), produzido em Bordeaux, era o preferido pelo seu mais forte consumidor, o mercado inglês. Esta relação foi inaugurada em grande parte pelo casamento entre a Duquesa Eleanor, da Aquitânia (região da França onde está Bordeaux) e o futuro Rei da Inglaterra, Henri Plantagenêt, que concederam privilégios fiscais a Bordeaux. O vinho tinto, hoje favorito da produção mundial, predominava no sul da França (Madiran, Cahors, Languedoc) e por muito tempo foi um vinho menor, associado a excessiva tanicidade, produção quantitativa, falta de controle da origem, etc. As próprias condições climáticas do sul favoreciam o perfil tinto (chamado de vin noir) e as difíceis condições de mercado prejudicavam a sua imagem, já que sempre era preterido em relação aos Claretes de Bordeaux.
Enquanto a região no entorno da cidade de Bordeaux prosperou desde o século XIII, com a oferta de claretes ao mercado inglês, no período moderno, o vinho será marcado por outras influências e preferências no estilo da produção, notadamente pelo gosto holandês. Mercadores de grande prosperidade no século XVII, os negociantes holandeses estimularão o desenvolvimento dos tintos de Cahors, Portugal e do futuro vinho branco licoroso de Sauternes, naquela época ainda semi-doce.
Os holandeses compraram terras, fizeram parcerias e chegaram a produzir o vinho licoroso, de forma adulterada, já que o processo natural era demorado e dispendioso. Mais algumas décadas, os franceses, encorajados pelo investimento e mercado holandês, aperfeiçoam a produção deste vinho e chegam a um resultado que passa por um processo de elaboração fortemente tocado pela natureza. Falar de Sauternes é falar de um conceito de produção que abrange outros vinhos que gozam de condições climáticas similares e que resultarão em vinhos “licorosos”, a partir do processo de botritização das uvas.
As evidências mais prováveis do vinho licoroso existem desde a Grécia nos banquetes sofistas, passando pelo período das Cruzadas, em Constantinopla e Chipre. O primeiro vinho com registro de uma utilização de uvas botritizadas foi produzido no nordeste da Hungria, em Tokaj-Hegyalja. Em 1571, foi oficialmente documentada a existência de 40 barris de um vinho Aszu (doce), denominado Tokaji. As produções de Tokaji passaram por várias mãos e perfis, até que, após a queda do comunismo, partes das terras foram privatizadas e compradas por investidores, que valorizaram ainda mais o produto, dentre eles, o renomado expert inglês, Hugh Johnson, co-fundador da Royal Tokaji Company.
Sauternes, apelação muitas vezes chamada de Sauternes-Barsac, é uma das denominações de origem mais meridionais de Bordeaux, situada à margem esquerda do Rio Garonne, a 40 km da cidade de Bordeaux. Barsac é uma comuna ao lado, que pode gozar da associação ao nome de Sauternes ou não (aquelas coisas que servem para complicar mais ainda o entendimento das demarcações francesas). Pouco acima e abaixo, teremos a maior concentração de brancos secos de Bordeaux, que, decididamente, não é o que predomina na região, a despeito de alguns belos vinhos. No entanto, a reputação dos brancos licorosos goza de amplo prestígio.
Com uma produção infinitamente menor que a dos tintos (e este é um dos seus méritos), Sauternes e Barsac também ganharam uma classificação dos Grand Crus Classés em 1855, assim como Médoc e Graves. Ao todo, foram classificados 27 crus: o Premier Cru Supérieur, Château d’Yquem, 11 Premiers Crus e 15 Second Crus. Mas sabemos que depois de 1855 muita água e, principalmente, muito vinho rolou em Bordeaux. Assim, nem só de Cru vive Sauternes e nem só de Sauternes e Barsac se originam os maravilhosos vinhos licorosos de Bordeaux. E Isso é um alívio para os nossos bolsos!
Logo ali ao lado, existem mais pelo menos quatro apelações que produzem deliciosos vinhos licorosos: Cérons, Cadillac, Loupiac e Sainte-Croix-du-Mont. O que muda, além da localização? Um pouco do solo, um pouco da topografia, a posição em relação aos rios, o que pode resultar em variações organolépticas, mas, de modo geral, não a ponto de prejudicar sua finesse. E o que garante essa qualidade, além do savoir-faire consagrado há mais de 160 anos? As cepas e sua interação com um microclima particular.
Os vinhos licorosos de Bordeaux são feitos da assemblage de três variedades de uvas viníferas: a Sémillon, a Sauvignon Blanc e a Muscadelle, com predomínio da primeira e pequenas parcelas da última. Cada produtor terá sua fórmula para criar seu estilo de vinho, com porcentagens distintas, mas, de modo geral, a Sémillon é a grande vedete dos Sauternes. Trata-se de uma cepa bastante resistente às pragas mais comuns na viticultura (o oídio e o míldio), especialmente em se tratando de uma região de grande umidade, como Bordeaux. Tem maturação tardia, sendo a última a ser colhida, após se tornar quase dourada, apresentando uma delicada paleta aromática, com notas de damasco, mel e frutas cítricas cristalizadas.
A Sauvignon Blanc é a segunda mais utilizada, importante variedade francesa, que já faz vinhos secos extremamente aromáticos no Loire e em Bordeaux. A Sauvignon Blanc aporta acidez, vivacidade ao vinho, essencial para dar leveza e frescor ao vinho licoroso. Finalmente, a Muscadelle, embora originária de Bordeaux, é uma uva difícil de trabalhar e, contrariamente, à Sémillon, é pouco resistente à doenças. Em pequena quantidade, entretanto, ela produz um suco bem doce, que acentua o gosto de frutas cristalizadas aos vinhos da região.
Em termos de solos, normalmente são regiões que, apesar da pequena extensão, reúnem subsolos de diferentes idades, sendo os mais antigos e altos situados a oeste e os mais baixos a leste. Sob uma matriz argilo-calcária, depositam-se pedras, cascalhos em um terreno muitas vezes arenoso. Mas o fenômeno mágico do Botrytis tem uma relação mais íntima com o clima e com os rios, não apenas com o Garonne, fundamental para toda a vitivinicultura de Bordeaux, mas com seu pequeno afluente chamado Ciron.
A partir do mês de setembro (dependendo do local e da safra), instala-se na região uma neblina quente, que se forma no rio Garonne e que, quando o rio faz uma curva, segue reto até chegar ao afluente Ciron, onde fica estacionada por algumas horas. O rio tem água extremamente fria e a massa de ar quente ficará bloqueada por esta corrente de ar frio, como numa panela de pressão, onde irá se desenvolver o fungo, chamado Botrytis Cinerea, sobre a casca da uva madura. O Botrytis irá perfurar a película das uvas, para se nutrir exclusivamente de sua água. Em condições climáticas não ideais, o fungo é destrutivo e a “podridão nobre” pode se tornar “podridão cinza”.
O grão murcha um pouco e com a neblina da noite e da manhã, a uva se reidrata. Assim, a partir do momento em que o sol e o dia aparecem, o Botrytis se redesenvolve e continua fazendo sua função de dessecar a uva. Rapidamente, em alguns dias, a uva se degenera e antes que isso aconteça completamente, colhe-se a uva botrytizada, cujo resultado é chamado de Pourriture Noble (podridão nobre).
Pourriture Tokaji – Pourriture Noble
Crédito da imagem supra: http://euobserver.com/media/src/85f200555ff72be6d31a98834669cfe2.jpg
Neste momento, o saber-fazer é fundamental para a escolha do momento das colheitas de cada parcela, visando aproveitar o apogeu de sua qualidade, antes que ela se desqualifique – um trabalho contínuo de degustação das uvas feito por cada produtor. A colheita pode levar algumas semanas, devido ao tempo variável de maturação (ou de podridão) das uvas. Processo de entendimento entre o homem e a natureza, que depende muito das condições climáticas e da precisão produtiva. De modo geral, são produções delicadas, de baixo rendimento, uma média de 25hl/ha. Diz-se que em Bordeaux, de cada vinha se faz um vinho e que, em Sauternes, de cada vinha se faz um copo de vinho!
Tudo isso para quê? Para a produção de um vinho de fato memorável, difícil de desagradar. De um amarelo dourado, com aromas de mel, frutas cristalizadas, perfumes exóticos e nozes, os vinhos de Sauternes podem variar em termos de doçura, acidez e untuosidade. A Maison du Vin de Sauternes, assim como as Maisons de outras apelações, recebe visita de clientes para promover e comercializar os vinhos da região.
Há uma vasta seleção de vinhos e, para melhor orientar a escolha do que comprar, eles oferecem aos clientes três provas de vinhos de Sauternes com estilos distintos e, a partir de seus depoimentos, indicam aqueles que podem melhor corresponder ao gosto de cada um. Trata-se de uma escolha difícil, já que existem muitos bons vinhos, originários de uma variedade de solos (mais pedregosos, mais argilo-calcários ou calcários), que lhes conferem algumas particularidades.
Se a procura for por uma boa relação preço x qualidade, talvez valha a pena circular um pouco mais, pois, como eu disse anteriormente, a vocação para vinhos licorosos ultrapassa os limites de Sauternes e até mesmo de Bordeaux, como mostra o exemplo de Monbazillac, uma AOC com excelentes vinhos licorosos, que se situa ao sul do vinhedo de Bergerac, na Aquitânia, braço esquerdo do Rio Dordogne.
Vale pesquisar, então, além de Sauternes, vinhos das seguintes apelações:
Barsac : Podem se beneficiar do nome Sauternes, mas seus vinhos são ainda mais licorosos e ótimos para acompanhamento de queijos tipo bleu, roquefort ou foie-gras. Vinhos longevos, podendo chegar a 100 anos.
Cérons : situada no interior da AOC Graves, seu nome faz alusão ao nome do Rio Ciron, diretamente relacionado ao fenômeno de Botrytis em Bordeaux. Produz vinhos delicados e vivazes, alguns podendo chegar a 25 anos de guarda.
Cadillac : Faz parte da AOC Côtes de Bordeaux Saint-Macaire, tornou-se apelação de vinhos licorosos a partir de 1980.
Sainte-Croix-du-Mont : dominada por colinas e pela proximidade ao Rio Garonne, é pouco conhecida, embora com vinhos nobres, de sabores intensos e estruturados.
Loupiac: vinhedo muito antigo, que cobre as colinas do braço direito do Rio Garonne e que produz belos vinhos licorosos, mas num estilo mais fresco, com boa acidez e vivacidade, funcionando muito bem como aperitivo. Estive recentemente visitando uma vinícola de Loupiac, que tem seus vinhos importados pela V&A Vinhos Franceses, com sede em BH, e apreciei muito o seu aspecto artesanal, a simplicidade e acolhimento do proprietário. E, especialmente, é claro, seu excelente vinho.
Segundo Patrick Dejean, um dos desafios do produtor dos vinhos licorosos da região é saber escolher o ponto de colheita, quando cada uva atinge o ponto de equilíbrio da assemblage : « …com a sauvignon blanc, se não espero o tempo do botrytis, vou a apenas 12° de álcool, mas é necessário chegar a 13,5°/14°. Já com a Sémillon, vamos a 18°, 20°, 21° (…) e sou eu quem decide qual o momento de colher e de parar a fermentação, para dar um bom equilíbrio entre o álcool, o açúcar residual e a acidez. Sem acidez, faremos um vinho pesado, sem vivacidade.»
Para finalizar, uma observação interessante. Enquanto em grande parte da literatura sobre vinhos, o vinho licoroso é indicado para harmonizar com sobremesas, na França, em muitos casos, a sobremesa entra como mais uma possibilidade. Os vinhos de colheita tardia e licorosos são muito recomendados para serem consumidos como aperitivo e para acompanhar produtos não adocicados, como o foie-gras e o queijo roquefort, neste caso, fazendo um contraponto sal x doce. A sobremesa sim, desde que esta não seja doce demais.
Muito interessante, como sempre muito bem elaborado,e eu sempre admirado.Sou fã !!!
Muito bem elaborado gostei muito sou fã !!
Parabéns pelo texto!
Informação ampla e concisa, com o melhor do vinho que é sua vertente histórico cultural.
Não basta escrever, tem de ter paixão que ó que flui das palvaras.
Obrigado!
Gosto de ler os seus textos, em razão do estilo completo e fácil.
Os vinhos licorosos nunca foram da minha especial admiração, não obstante tenha uma queda especial pelos brancos bordaleses e claro os muitos bons tintos da região.
Uma visita por lá, entretanto, fez-me repensar este raro vinho e passar a experimentá-lo mais vezes.
Saudações e continue a nos brindar com os seus belos textos.
alberto
Parabéns pelo excelente artigo, que faz um ótimo apanhado sobre vinhos maravilhosos. Eu adoro terminar um grande jantar com uma bela sobremesa e um vinho botrytizado.
Continue com seu estilo completo de escrever.
Saudações,
Carlos/SP
Gilmar, Alberto, Nilson, Carlos,
Obrigada pelos comentários elogiosos! A maior alegria para quem escreve é o reconhecimento do leitor. Escrevo sim tudo com muito critério e completude, pois respeito muito quem me concede um espaço para publicar, aquele que dedica seu tempo para me ler e o vinho, que nos apaixona e nos incita a desvendar o seu imenso e delicioso universo de cultura e prazeres. Abs, Miriam Aguiar
Entender a história e de nossa civilização pelas nuances e prodígios do vinho é a mais bela e saborosa forma de nos conhecer, a humanidade, avanços e tropeços. Não seria oportuno incluir nos currículos da educação básica e superior trechos da história/vinho para que nos tornassemos mais sensíveis, atentos, educados e civilizados? Obrigado pela aula de história e educação humano-sensitivo.
Caro Ruy, primeiramente, obrigada pelos comentários. Ser lida com respeito e reconhecimento é o que mais me gratifica. De fato, a história nos conta e nos explica muito das trajetórias, glórias e dificuldades da humanidade. E há muitas histórias que não são ditas, pois sabemos que a história oficial, vista às vezes como fotografia da realidade, é apenas parte da vida, muitas vezes editada. Imagina que, se mesmo cultos, nos enganamos, incultos, enxergamos mal e de forma artificial. Este o risco de se pensar que ter disponível muita informação (como temos hoje) significa compreender, saber, ter uma visão crítica a respeito do mundo. Então, eu ficaria muito feliz se tivéssemos educação eficiente no nosso país, se os diplomas não fossem comercializados como produtos de supermercado, se as pessoas pudessem conhecer pelo menos um pouco de sua própria historia, para melhor compreender o nosso papel no meio disso tudo.
Para mim, a experiência de se beber um vinho atravessado pela sua genealogia é incomparavelmente melhor.
Saúde! Abs, Miriam Aguiar