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Por Míriam Aguiar –

Era um domingo de clássico do futebol mineiro e embora este não seja o dia nacional da feijoada, tivemos que inventá-la para receber nossos amigos sommeliers, que trabalham noite e dia durante toda a semana. Felizmente, uma das mais gratas qualidades da nossa terra é a hospitalidade e, evidentemente, a comida. Foi o Toninho, proprietário do La Farina – um estabelecimento do bairro Cruzeiro, com mais de 30 anos, que tem como uma de suas especialidades a Feijoada (aos sábados) –, quem nos preparou a iguaria num domingo, excepcionalmente, para a realização do encontro. Agradeço-lhe o preparo cuidadoso de uma calorosa feijoada, com seus acompanhamentos tradicionais: couve refogada + molho apimentado + farofa + arroz + laranja.

Pensar em pratos brasileiros é pensar em feijoada, assim como pensar em desafios de harmonização. São vários os textos que indicam este prato como um “problema” para o vinho. Mas se a gente pesquisa por aí, percebe logo que não há prato sem par em países com forte cultura de consumo de vinhos. No entanto, é fato que a grande corpulência da feijoada, com sua explosiva base proteica de feijão e carnes gordas, acrescida de temperos e aromas defumados, nos provoca mais dúvidas do que certezas de ter um palpite assertivo. Eu mesma, evitando me pautar por indicações já trilhadas, há menos de uma hora do evento não havia decidido qual vinho levaria para o teste.

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A surpresa foi que, diferentemente do esperado, tivemos muitas combinações satisfatórias e algumas descobertas interessantes. Uma delas foi de que, algumas vezes, especialmente diante de pratos marcantes, que, invariavelmente, vão “deixar” registros no seu dia, é importante decidir o que você busca na harmonização com o vinho. Percebi que algumas combinações tornavam-se quase incomparáveis, mesmo  que sejam todas compatíveis. É mais ou menos assim: todas funcionam, não são  melhores nem piores, porque cumprem papéis distintos. E aí, a escolha do vinho deverá começar pela escolha de como você quer que ele funcione na refeição.

Na prática, com a feijoada isso significa que às vezes vinhos antagônicos em relação à estrutura e direção olfativa do prato, como os espumantes, podem não provocar um encontro tão harmônico, mas funcionar para que você ganhe uma leveza ao final da refeição. Por outro lado, vinhos que andam na mesma direção – par e passo em estrutura e personalidade – podem sobrecarregar um dia em que você não tenha espaço para a sesta. E, provavelmente, os vinhos mais harmônicos serão os que equilibram melhor essas orientações. Mas fica a dica de que parar para pensar naquilo que buscamos em cada harmonização talvez seja uma boa ideia.

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Vamos ao relato do que se passou com 10 vinhos degustados com a feijoada. Tivemos uma participação majoritária de tintos tranquilos (seis), três espumantes, sendo um deles tinto, e um vinho branco tranquilo. Quais os motivos desses palpites? Primeiramente, houve uma preocupação em evitar uma possível metalização proveniente do choque entre vinhos que ainda se mostrassem tânicos e as carnes salgadas da feijoada. Analogias sempre vêm a calhar e uma delas foi pensar nas características da harmonização regional com a nossa caipirinha, que tem acidez elevada, mas também é frutada pela adição do açúcar.

Em segundo lugar, temos as harmonizações com pratos similares europeus, como o cassoulet e as lentilhas com carne de porco da França ou com os pratos de origem portuguesa: cozidos com vários tipos de feijões, vegetais e carnes à base de porco ou vaca, feitos no norte de Portugal, nas regiões do Minho, Trás-os-Montes e Alto Douro. E, finalmente, para combinar com as características físicas e organolépticas da feijoada, os participantes pensaram em vinhos com estrutura suficiente para se sustentarem diante do prato e com boa acidez, para ajuste da gordura e limpeza das papilas gustativas. O procedimento foi feito todo às cegas e a ordem de serviço aleatória, embora preservando a colocação dos brancos inicialmente, para que o peso dos tintos não ofuscasse suas percepções.

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Coincidentemente, assim como no primeiro encontro, o vinho que mais funcionou foi um vinho português. E qual o nome do vinho? FEIJOADA!!! Um vinho feito sob medida para a feijoada…dá para imaginar? Pois é, o Feijoada & Co. 2008 ganhou absoluto com 6 votos, seguido de um empate técnico entre dois vinhos uruguaios, bem distintos entre si: o branco De Lucca Marsanne Reserva 2012 e o tinto Tannat Bouza 2012.

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Vamos aos breves comentários de cada casamento:

VINHO NA MESA MOUSSEUX VICENT EDOUARD POIRIER (1)

 

Vincent Edouard Pourier Brut – importadora V&A Adegas & Vinhos

Este mousseux do Vale do Loire é um espumante delicado, com boa acidez e frescor suficientes para enxugar a untuosidade das carnes, mas há um choque entre o feijão e a mousse, com prejuízo para suas características.

 

VINHO NA MESA PROSECCO PERINI

Casa Perini Prosecco – Serra Gaúcha, Brasil

Outro espumante leve, delicado, cujo caráter mais frutado possibilita um encontro inicialmente harmônico com a feijoada, mas esta acaba por encobrir e diminuir sua persistência. 

VINHO NA MESA DE LUCCA

DeLucca Marsanne Reserva  2009 – Importadora Premium Wines

Vinho de aromas instigantes, com toques de oxirredução, tonalidade amarelo-dourado, aromas e gostos amendoados. Por ser um branco de personalidade, ele mantém sua orientação organoléptica perceptível diante da feijoada e faz um encontro também interessante. Para quem quer uma harmonização surpreendente, é uma boa sugestão. 

VINHO NA MESA ESPUMANTE ORTIGÃO

Quinta do Ortigão Brut – Importadora Adega Alentejana

Segundo um produtor uruguaio, alguns especialistas brasileiros consideraram  o seu espumante tinto de tannat a bebida ideal para a Feijoada. Na época, a sensação que tive é que o espumante tinto, diferentemente dos brancos e rosés, não funcionam sem comida, pois não têm o frescor como diferencial. Este exemplar português tem acidez e taninos que ajustam a untuosidade da feijoada, mas continua um pouco acima do tom, provocando sensações metálicas e certo amargor no final de boca.

 VINHO NA MESA FLEURIE

Mommessin Fleurie Domaine de la Presle – Verde Mar

Um cru Beaujolais delicado e elegante, estilo bourguignon, que costuma funcionar com embutidos e pratos à base de porco, mas que, definitivamente, não é um vinho para feijoada. A acidez enxuga as papilas gustativas inicialmente, mas falta intensidade organoléptica e corpo para acompanhar a feijoada. Um encontro sem emoções. 

VINHO NA MESA QUINTA DO SEIVAL

Quinta do Seival Castas Portuguesas 2008 –  Miolo, V. Vinhedos

Um português naturalizado brasileiro, potente, com bom equilíbrio entre maturidade, acidez e álcool e estrutura suficiente para acompanhar o vigor da feijoada. No final de boca, continua a sensação da integração entre taninos do vinho e da madeira, que, após alguns goles, pode « pesar » a refeição. 

VINHO NA MESA FEIJOADA VINHO

Feijoada & Co 2008  Península de Setúbal – Wine with Spirit

Um vinho feito para ser harmonizado com feijoada. Uma verdadeira surpresa, pelo êxito num teste às cegas, que teve outros vinhos tintos adequados e pela proposta, no mínimo, original de se fazer uma produção orientada. Feito com as castas típicas do Alentejo, é um vinho com destacada acidez e toques de frutas maduras. Sua acidez enxuga perfeitamente a gordura e seu sabor complementa bem o da feijoada, deixando uma sensação frutada, que dá fôlego para as próximas garfadas.

VINHO NA MESA MONTEPULCIANO

 

Pian d’Asinelli, Montepulciano d’Abruzzo Sta. Dorotea            

Vinho de corpo médio, taninos finos, boa acidez e aromas com notas picantes. Funcionou bem, mas dividiu opiniões quanto à capacidade de se sustentar no final de boca – para uns a fruta sobrou, para outros faltou.

 VINHO NA MESA CASA VALDUGA

Casa Valduga Cabernet Franc Raízes 2011 – Campanha, Brasil

Vinho tinto com taninos firmes, boa acidez e fruta. Sua personalidade e potência se destacam mais do que a feijoada.

VINHO NA MESA BOUZA

 

Bouza Tannat 2012  – Importadora Decanter

Dividiu o segundo lugar com outro uruguaio. Neste caso, um autêntico harriague (nome tradicional da tannat no Uruguai) de cor rubro violeta, nariz com muita fruta e notas de carvalho bem aparentes. Acompanha a feijoada, mantendo-se imperioso e nítido. Um encontro de titãs, que pode encantar ou sobrar para quem quer uma experiência menos intensa.

Bem, ao final do evento, saímos convencidos de que a feijoada é sim um prato harmonizável e que continua sendo deliciosa e corpulenta com vinhos, cabendo ao consumidor escolher se quer um vinho que suavize ou estruture mais essa experiência. Em relação ao seu parceiro ideal e “xará”,  cabe-me parabenizar a ousadia e precisão dessa criação, que me provoca muitas reflexões, em relação a esse novo formato de produção, pautado pela finalidade de consumo. Trata-se de um projeto inovador de portugueses que criaram vinhos para contextos específicos, fugindo totalmente do padrão da clássica vitivinicultura europeia. Além do Feijoada & Co, Bread & Cheese e Dine with me tonight, entre outros.  

Sobre Autora: Míriam Aguiar é pesquisadora do mercado de vinhos, com Doutorado na USP e Pós-doutorado na UMR Innovation Montpellier, autora de livro e artigos sobre o tema e editora do Blog "Os vinhos que a gente bebe"
Sobre Autora: Míriam Aguiar é pesquisadora do mercado de vinhos, com Doutorado na USP e Pós-doutorado na UMR Innovation Montpellier, autora de livro e artigos sobre o tema e editora do Blog “Os vinhos que a gente bebe”
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