O que é melhor ? Um vinho de uma safra ou de várias safras? Se se entende que se combinem vinhos de distintas castas, solos, barricas, leveduras, tonéis e lugares, por que mesclar colheitas para vinhos de mesa, se trata de um  tabú?

 

A razão deste post ter sido elaborado é porque cada vez as safras estão mais iguais. Hoje as diferenças entre colheitas são menos notórias porque, a final de contas, a técnica nos vinhedos, a seleção na vindima e bodega, permitem alcançar safras muito parecidas. Por isso convém que deve ser adicionado à disciplina legal das safras, uma maior liberdade na elaboração dos vinhos. Mas também longe de uma vez dos regulamentos das safras, cepas, barricas, rendimentos e origens. Uma coisa não quita a outra para dar mais liberdade ao exercício criativo dos enólogos, um setor cujo nível técnico tem conseguido uma espetacular melhora nos últimos 15 anos. Mas a fusão de safras não é uma fórmula nova, pois já se utilizou na segunda metade do século XIX e grande parte no século seguinte.

El cupage ou mistura de vinhos e colheitas tem na história da vinicultura espanhola recente um “tratamento pecaminoso” se nos referimos aos grandes vinhos, porque o termo se vinculava à mescla dos vinhos correntes. Todavia, não podemos olvidar que esta prática como “arte” tem sido um distintivo espanhol, melhor dito, ibérico. A fórmula dos Ruby, Colheita e Tawny dos vinhos do Porto, assim como também as criaderas-soleras dos vinhos de Jerez, não deixam de ser uma mescla regulamentada de vinhos definidos pelos “provadores” lusitanos e os enólogos “capatazes” de Jerez. Como aqueles Riojas de segundo, terceiro, quarto e quinto ano que foram proibidos nos princípios da década de 1980. Eram os vinhos engarrafados em seu “segundo”, “terceiro ano”, etc., de uma colheita desconhecida, que não aparecia no rótulo, nem tão pouco a data de engarrafamento, o que permitia toda sorte de combinações entre vinhos de diferentes colheitas e amadurecimentos.

Todo este panorama é fruto de nossa histórica função de provedores de matéria prima e portanto à mercê dos desígnios dos comerciantes. Um truque que é o mais flagrante exemplo de cupage é a forma de trabalho dos armazenistas franceses, que na segunda metade do século XIX se instalaram nas construções das estações das estradas de ferro de Rioja. Eram negociantes e criadores bordaleses em cujas adegas mesclavam vinhos de distintas procedências e colheitas para desenhar o vinho mais homogêneo e que mais e melhor se assemelhasse aos seus. Esta prática foi herdada pela maioria das bodegas históricas de Rioja que antepuseram sua condição de criadores sobre a de cosechero-elaborador. Nos vinhos de Jerez ocorreu o mesmo. Em princípio, se mesclavam nos portos ingleses vinhos que sofriam a travessia marítima, que mais tarde nas bodegas jerezanas se sofisticou com o procedimento de soleras. Em Jerez e Rioja conviviam os vinhos de colheitas únicas com os de colheitas misturadas, porque as bodegas consideravam com justiça que, como os “Portos Vintage”, somente as melhores colheitas deveriam ir puras às garrafas e mencionadas nos rótulos (exceto os Marqueses de Riscal e Murrieta, que citavam todas) e o resto como produto de uma sabia mescla corretora de várias safras. A final de contas, o distintivo da colheita servia para uma identificação das melhores e, consequentemente, uma referência para guardá-las na adega doméstica.

Na década de 1.970, época culminante destes dois modelos, as contra-etiquetas não informavam o ano de colheita. Únicamente aparecia as palavras “Reserva ou Gran Reserva”, nem sequer existia na contra-etiqueta o termo “Crianza”. Meu sempre admirado e recordado Pedro López Heredia (Viña Tondonia) foi um dos riojanos que mais lutou por manter estas duas fórmulas, demostrando que, a peculiaridade riojana de combinar vinhos de distintas zonas como em Champagne, deve unir-se à possibilidade de misturar colheitas para melhorar os vinhos de gama baixa e média. Também é certo que a arbitrariedade nos rótulos estava na ordem do dia. Então a confusão entre “Reserva”, “Reserva Especial” e “Reserva Familiar” era de tal calibre que o consumidor somente  podia entrever uma diferença em virtude do preço. Naquela época, entre os riojanos se chegava a criticar o modelo francês que implantou o Conselho Regulador. Era mais lógico que na França se registrassem as safras nos rótulos devido às suas profundas diferenças climáticas. Resultava complicado misturar colheitas medíocres e incluir ruins com anos melhores. Este fenômeno era mais benigno em Rioja, cujos produtores apostavam na regularidade.

Se o que se pretende é que uma colheita reflita a influência climática desse ano em toda sua extensão, me parece lógico que se respeite sempre que seja uma grande colheita como as recentes de 2001 o 2004. Ainda assim, legalmente está autorizado adicionar um máximo de 15 por cento da safra anterior ou posterior. Quem dúvida da qualidade do champagne quando este sistema está permitido sob a nomenclatura de “cuveè” e  “millesimé”  para as grandes safras?

 

Vinícola Channing Daughters

Mas também a mescla de safras poder ser um fator melhorante. Recordo uma visita feita faz 6 anos a Long Island, a zona vitivinícola ao norte de Nova York, onde conheci James Christopher Tracy, um autêntico desenhador de vinhos muito mais do que enólogo. Autodidata e transgressor, é proprietário da vinícola Channing Daughters. Personagem capaz de fazer um “blending” de grande destaque, o tinto Over and Over Variation 7, onde mistura a filosofia das criaderas jerezanas com os antigos assemblagens riojanos. O sistema posto em prática em 2008, misturando o conteúdo de quatro barricas de Merlot 2004 com a mesma quantidade da safra 2006 em plena fermentação malolática, o que permite que a safra anterior sofra influência da malolática do vinho jovem. Esta mescla amadurece durante 10 meses. Em seguida, a metade é engarrafada e a outra metade se mistura com a mesma quantidade da safra 2007 durante sua malolática e assim sucessivamente até chegar à “Variation” 7 com a safra 2013. O truque consiste em proporcionar complexidade com a soma da riqueza que aportam as lias durante as sucessivas maloláticas das distintas adições de vinho jovem e sua identificação frutada.

Vinho solista e vinho sinfonia

A seguir, um exemplo que gostaria de acrescentar a este conhecido debate sobre se é melhor um vinho varietal, ou seja, elaborado com somente uma variedade de uva ao multivarietal, de várias. Buscando similitude musical, um vinho de uma só variedade seria algo assim como um “vinho solista” e, como tal, deveria ser o virtuosismo de uma cepa, enquanto que o “vinho sinfonia” é a soma de várias, com suas características diferenciadas que deveriam compor uma sinfonia ou uma harmonia de matizes instrumentais. Considerando a mescla das colheitas, por exemplo, a colheita 2011 foi a mais quente, com um perfil de madurez e menor riqueza de matizes frutais que a 2012 e, dependendo da “arte” do enólogo que poderia “refrescá-la” com vinho mais jovem na proporção que seus sentidos determinem. Em sentido inverso, um vinho da safra 2012 com um toque vegetal e taninos mais marcados que podem suavizar-se com a safra antecessora que irá proporcionar-lhe mais madurez. Na Espanha, só a mítica bodega Vega-Sicilia se permite o luxo de vender mais caro o “Reserva Especial” com a apetecível mescla de três colheitas diferenciadas, que o “Único” safrado.

1° lugar – Vega-Sicilia Unico 2009

Acredito que seja coerente que a compra de uma garrafa implique na eleição das melhores colheitas para bebê-las, como igualmente os vinhos bons sem safra, sempre que a mescla seja o fator melhorante. O razoável para uma melhor identificação destas garrafas é que apareceria a data do engarrafamento, somente como uma identificação durante o período de consumo mais ou menos imediato que nos safrados. Em vez disso, o que falhou foi a tentativa por parte do Conselho Regulador de autorizar o vinho de mescla C.V.C. (Conjunto de Várias Colheitas) para deixar contentes os simpatizantes do “retoque”, fórmula essa que não buscava o assemblage melhorante…..

Exemplares da Companhia Vinícola do Norte da Espanha – Rioja. O Imperial Gran Reserva 1999 foi um dos melhores tintos de todo evento.

 

Revolvendo a história de Rioja encontramos outra tradição, a de diferenciar as mesclas de origens, que chegaram até a década de 1980 e que existe desde os tempos pré-filoxéricos. Trata-se do “tipo Borgoña” e “tipo Médoc” que algumas bodegas históricas diferenciavam em duas gamas de tintos: uma para os que preferiam os vinhos mais encorpados e escuros com algo menos de acidez (identificados com a garrafa tipo borgonha mais arredondada) elaborados com vinhos da Rioja Alavesa ou Garnacha da Rioja Baixa e outra gama “Médoc” para os que elegiam os vinhos mais finos, ligeiros e ácidos envasados na garrafa cilíndrica bordalesa, procedentes da Rioja Alta e com uma maior proporção de Tempranillo, Mazuelo e Graciano.

 

Imperia Gran Reserva DOCA Rioja 2004 – blogdojeriel.jpg

Uma fórmula possivelmente mais diferenciada que os atuais tipos de amadurecimento “Crianza”, “Reserva” e “Gran Reserva”, hoje de menor encaixe para o consumidor. Este antigo modelo adianta ao consumidor os dois tipos de tintos de mais uso: ligeiros e encorpados. Do grupo “Médoc” são o Imperial de Cune,  Viña Tondonia de Bodegas López Heredia,  Viña Albina de Bodegas Riojanas e Viña Alberdi de Rioja Alta. Do grupo “Borgonha” estão o Viña Real de Cune, Viña Bosconia de López de Heredia,  Viña Real de Bodegas Riojanas e o Viña Ardanza de Rioja Alta. Hoje, todos estes vinhos são verdadeiras marcas sem que as características esboçadas sejam seu distintivo.

Fonte: http://jpenin.guiapenin.com/2014/10/02/el-tabu-de-las-anadas/

Texto vertido para o Português (Brasil) por Jeriel da Costa com autorização. Proibida reprodução.

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