Jorge Lucki

“Nos vinhedos da Gravner, no Friuli, nordeste da Itália, o respeito à natureza é princípio básico, indo até além dos preceitos biodinâmicos. Por mais que as descobertas arqueológicas avancem, não vai mudar a teoria que o vinho nasceu por acaso e que a participação do homem se limitou inicialmente a colher as uvas e deixa-las em condições para que o processo de fermentação tivesse início. Ao contrário da cerveja, que exige a adição de água aos grãos, e dos destilados, que requerem um procedimento de destilação, a uva precisa apenas de tempo para virar vinho. Contudo, para que tenha certo grau de confiabilidade e seja passível de ser considerado produto de consumo, o vinho necessita de alguma intervenção humana (até para que não vire vinagre, seu caminho natural). A questão é: até onde vai essa interferência. Nas duas ou três últimas décadas, uma série de técnicas, equipamentos e produtos foram desenvolvidos com o intuito de “melhorar” o vinho. O clima quente que caracteriza boa parte dos países do Novo Mundo – tiveram grande ascensão no cenário vinícola mundial no período – tende a fazer com que os vinhos pequem no quesito frescor devido aos baixos índices de acidez com que as uvas são colhidas. Uma das formas comumente utilizadas para compensar esse desequilíbrio é acidificar artificialmente, adicionando ácido tartárico industrializado, também conhecido como “australian sugar”(!), prática muito utilizada nos brancos e tintos desses países. A utilização de aditivos não tem limites e funciona como uma verdadeira maquiagem. Recentemente, na seção “Notes  & Queries” (Notas e Consultas), da conceituada revista inglesa “Decanter”, um leitor colocou em questão a eventual permissão para manipulação da cor nos vinhos tintos americanos. Indo direto ao ponto, Margaret Rand, crítica especializada e contribuinte regular da publicação, respondeu que se as técnicas normais de extração (durante a fermentação) não proporcionarem a profundidade de cor necessária desejada (pelo produtor), é permitido usar um concentrado denominado Mega Purple, derivado da uva tintureira (de polpa tinta) “rubired”, fabricado por uma empresa pertencente à Constellation Wines, um dos maiores conglomerados de bebidas, proprietário, entre tantas marcas, das americanas Mondavi e Opus One, e da italiana Ruffino. Rand afirma que “é legal, não é prejudicial (à saúde), e fala-se que é amplamente utilizado na Califórnia para avivar a cor de vinhos baratos. Não se comenta abertamente, mas altera também o sabor, acrescentando um pouco de doçura. Vinhos de marca baratos precisam ser consistentes, e agradar os olhos e o paladar dos consumidores”. Em coluna que mantém há tempos na mesma Decanter, o autor Andrew Jefford expressou abertamente sua alegria em voltar à Inglaterra, depois de passar um bom tempo na Austrália em busca de informações para o livro que estava em vias de escrever. No artigo, ele comentou sobre o estilo “fabricado” dos rótulos correntes australianos – muita madeira, acidez desbalanceada e geleia de fruta -, fazendo com que sentisse saudades dos vinhos básicos europeus aos quais estava acostumado. Tem quem goste do gênero (os incautos?), afinal foi apostando nesse segmento que a Austrália virou o bicho papão do mercado, ganhando espaço significativo em centros de consumo importantes, como a Inglaterra e os EUA, entre finais dos anos 1980 e meados da década passada. Uma das marcas mais representativas deste padrão, e que teve grande sucesso nos dois países, foi o Yellow Tail, que, sozinho, em 2005, vendeu mais garrafas os EUA do que todos os produtores franceses juntos (7,5 milhões de caixas). Quem está por trás dessa proposta acredita nela. A título de curiosidade, Marcello Casella, que com os dois irmãos comandava a vinícola, foi preso em setembro, acusado de envolvimento com uma quadrilha de traficantes de drogas. Por coincidência, encontrei o mentor destes vinhos, o enólogo John Quarisa, no Japan Wine Challenge de 2006, em Tóquio (na época, ele já tinha largado a função para montar um negócio próprio com a mulher), quando, como jurados, tivemos a oportunidade de sentar à mesma mesa em algumas sessões de degustação e discutir os vinhos propostos. Nossas diferenças de avaliação eram justamente nos vinhos comuns, para os quais minha postura era (bem) mais crítica, economizando bastante na concessão de “Seal of Approval”, um tipo de “menção honrosa”, abaixo de “medalha de bronze”, enquanto ele era bastante benevolente. Dentro da maior cordialidade eu sustentava que deveríamos seguir à risca as diretrizes do concurso, que era nosso dever procurar “ausência de defeitos significativas, sabores puros e frescos, equilíbrio, concentração (mas não um excesso de concentração) e complexidade”. Vale dizer que o rótulo, trazido pela Abflug, importadora que não deu certo, não pegou no Brasil. Depois de tantos abusos enológicos é de se convir que mais hora menos hora haveria uma reação contrária, até em função do que já tinha ocorrido no campo, onde os excessos começaram antes – a utilização de fertilizantes e defensivos agrícolas, tidos como milagrosos no combate às doenças da vinha, se disseminou (de forma abusiva) após a Segunda Guerra, época em que grandes rendimentos e pouca preocupação com danos ambientais eram dominantes, dando origem, ainda na década de 1980, a um movimento de maior respeito ao meio ambiente, com mudanças na maneira de trabalhar a terra e na limitação da produção das parreiras. Essa conscientização levou um crescente numero de produtores a abandonar o uso de pesticidas, herbicidas e outros produtos de síntese no cultivo das vinhas. Com um sentido mais rígido quanto às tarefas de campo e tratamento do vinhedo, foi ganhando força a corrente dos adeptos da escola biodinâmica. Embora nem todos os produtores seguidores dos preceitos orgânicos e biodinâmicos tenham aderido aos organismos certificadores reconhecidos internacionalmente, como Demeter, Ecocert e Biodyvin, e a despeito da legislação da União Europeia sobre o assunto não ser muito clara e estar em fase de novas determinações, o movimento é relativamente unido e bem organizado. Ainda que não se possa comprovar cientificamente as benesses das teorias que os guiam, caso das influências cósmicas e da ação dos compostos utilizados – enterrar corno de boi, por exemplo – para valorizar as defesas naturais da planta, o fato de ser necessário um trabalho mais atento e apurado já implica um produto mais confiável. Os resultados também atestam que os vinhos não perdem identidade, ganhando, ao contrário, um grau de pureza e uma expressão do terroir superiores. Isso não acontece com os chamados “Vinhos Naturais”, categoria criada (informalmente) no final da década passada como resposta à proliferação de aditivos e aos excessos da enologia moderna, carecendo ainda de normas mais precisas que definam quais vinhos nela se enquadram. Teoricamente, são vinhos produzidos sem intervencionismo, ou com um mínimo de intervenção, o que significa nada, já que o campo é vastíssimo. O discurso é bonito e agrada (a mim também), mas só boa intenção não basta. Não garante qualidade nem define, de antemão, um estilo. A partir do momento em que as uvas são colhidas – no geral, os produtores de vinhos “naturais” adotam práticas orgânicas e biodinâmicas (é um bom começo) – o que se segue é uma caixa preta. A utilização apenas de leveduras indígenas e o vinho não passar por um processo de filtração são medidas positivas, o resto é vago. O mesmo, e particularmente, se estende ao emprego do mais conhecido, e vilão, dos produtos à base de enxofre, o anidrido sulfuroso, cuja fórmula é SO2 e deve ser mencionado no contrarrótulo, caso sua presença seja detectada, sob a forma de “contém sulfitos”, “INS 220”, ou “E220”. Mais do que ser acrescentado como conservante na hora do engarrafamento, o anidrido sulfuroso é, nos vinhos “comuns”, empregado em diversas etapas processo de vinificação, desde o momento que a uva chega à adega. Não é apenas conservante, é também antioxidante – diminui o risco de o mosto se oxidar, assim como o vinho quando está nas barricas – e antisséptico, eliminando as leveduras e bactérias inferiores que provocariam doenças no vinho ou formação de produtos secundários indesejáveis. Produtores de vinhos “naturais” não especificam claramente sua utilização, havendo casos em que não o utilizam de todo, ou só o utilizam antes do engarrafamento, com a função específica de preservar o vinho se não a longo prazo, ao menos durante o longo trajeto que sua comercialização requer. É bem verdade que há consumidores que são alérgicos ao produto, mas a postura dos “vinhos naturais” não está necessariamente fundamentada nesse aspecto (que é importante, sem dúvida). Trata-se, acredito, de um radicalismo que tende a comprometer a qualidade do vinho e sua evolução, atirando-o à própria sorte. Ou ao azar de quem comprar uma garrafa pensando em encontrar aquilo que o vinho tem como maior virtude o elemento prazer. Vai, muito provavelmente, encontrar uma bebida oxidada, descaracterizada. Se fosse viável, muitos celebrados biodinâmicos “xiitas”, caso de Nicolas Joly, o mentor e maior incentivador dessa cultura, Anne Claude Leflaive, Olivier Humbrecht e Josko Gravner, entre tantos, já o teriam feito. Aliás, alguns até tentaram e recuaram diante dos resultados. Cabe ainda acrescentar que um destes compostos de enxofre, o sulfato de cobre, comumente aplicado no vinhedo, é autorizado pelas rigorosas normas da escola biodinâmica. O cuidado está em utilizá-lo comedidamente. O lado vilão do SO2 aparece quando utilizado em excesso – para mascarar uvas ruins e vinificações mal cuidadas. Se tudo é feito com cuidado as doses ficam bem abaixo do permitido. Os limites autorizados variam de país para país, ou, mais especificamente, entre os regidos pela UE e o bloco do Novo Mundo – aqui, inclusive, pode haver diferenças entre seus os membros -, além de limites distintos em função dos organismos certificadores, bem mais rígidos. Na Europa, o teto estipulado (revisado recentemente) é de 100 mg/litro para vinhos tintos “bio” e 150 mg/litro para brancos, podendo chegar a 370 mg/litro para doces tipo Sauternes. Bons produtores esforçam-se e conseguem elaborar vinhos com níveis ainda inferiores aos estipulados. O ponto de partida é uma boa seleção de uvas, direcionando para a fermentação só aquelas sadias e em bom estado de maturação. A incidência de reações alérgicas a sulfitos é relativamente pequena no corpo humano e esse número poderia se reduzir ainda mais se os vinhos consumidos forem de boa qualidade. O assunto “vinhos naturais” é motivo de grandes discussões ultimamente, tendo sido, inclusive, tema do último filme de Jonathan Nossiter, “Natural Resistance”, que estreou no Festival de Berlim no ano passado, dez anos depois de seu polêmico “Mondovino”. Os quatro vinhateiros italianos retratados na tela estão no portfolio da importadora Piovino (11 9 7315 2373), dedicada a vinhos orgânicos, biodinâmicos e “naturais”, e que tem como sócios Paula Prandini, mulher de Nossiter, e seus dois irmãos. O rótulo aqui destacado é o Ageno 2009 (custa em torno de R$ 150,00), da vinícola La Stoppa, produzido com 60% de malvasia de candia, além de otrugo e trebbiano, fermentadas com as cascas, originando um vinho “laranja” que segue o protocolo dos “vinhos naturais” e tem 26 mg/l de anidrido sulfuroso”.

Fonte: http://www.gsnews.com.br/vinhos-naturais-discurso-bonito-mas-impreciso.aspx

Atenção: os grifos, itálicos e negritos são nossos!

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