Por Míriam Aguiar –

Há algum tempo venho visitando a região do Vale do Rhône, na França, pela coincidência dos meus últimos itinerários no país e pela curiosidade de conhecer mais de perto a sua grandiosa produção, segunda maior superfície de vinhedos AOP da França. São 27 AOP’s, dentre as quais a AOP Côtes du Rhône Regional é responsável por cerca de metade da produção e abriga vinhos brancos e tintos produzidos em 171 comunas, espalhadas quase que integralmente na parte sul do Vale do Rhône. O Cotes du Rhône genérico é muito difundido no país e no exterior e por vezes pode dar uma impressão errônea sobre a qualidade da produção da região. É muito comum encontrar nos menus dos mais diversos endereços de Paris a referência ao vinho, sem quaisquer menções de produtores e particularidades dos vinhos. Visitando um amigo na cidade, abri uma garrafa de um Crôzes Hermitage para bebê-lo em sua companhia. Ele adorou e me perguntou a origem. Eu disse que era um vinho do Rhône e ele mal podia acreditar, pois mesmo não sendo um conhecedor do tema, ele se recusava a beber vinhos do Rhône, justamente porque guardava a lembrança de vinhos de mesa magros, sem nenhuma expressividade.

Vinhos do Rhône
Vinhos do Rhône

Ter a inscrição genérica da AOC Côtes du Rhône não basta para dizer de sua qualidade. Como em todo universo do vinho, é bom evitar a adoção de clichês sobre o que é bom ou ruim e buscar conhecer os vinhos de perto, que podem variar bastante entre si, não apenas pelas denominações, prêmios, notoriedade mencionados em seus rótulos, mas por uma composição desses elementos e preferências. A indicação do produtor é uma boa pista, que nos aponta o potencial de qualidade de um vinho, sua tradição de bem fazê-lo e zelo pela notoriedade. No entanto, ela pode também não ser absoluta, já que há grandes negociantes que construíram suas marcas com produtos de qualidade, mas que a extensão do negócio fez com que a dimensão estratégica e comercial fosse priorizada e o controle de qualidade ficasse descuidado. Além disso, existem marcas que ficam conhecidas pela grande quantidade e distribuição, mas que nunca tiveram um esmero produtivo. Quem não conhece, pode supor que a sua popularidade indique qualidade e isso dificilmente acontece nos business do vinho.

Feira de Vinhos
Feira de Vinhos

A Denominação de Origem tem grande valor, por fazer referência ao crivo de uma sistematização de qualidade, mas nem sempre há uma reavaliação sistemática para fiscalizar se o padrão se mantém, bem como para constatar a presença da tipicidade, um elemento importante que as denominações deveriam resguardar. As notas e premiações podem ter grande valor, mas depende muito de quem avalia e da seriedade dos concursos, hoje  muito disseminados e procurados, já que dão ao participante a chance de poder ostentar em sua garrafa um selo de desempenho superior, mas a pergunta que fica é: ser superior em relação a quais concorrentes? Levando em conta quais critérios de qualidade?  Tendo em seu júri que especialistas? Utilizando qual metodologia de avaliação?

Medalhas
Medalhas

Bem, mas voltando ao ponto de partida, uma das minhas curiosidades era tentar desvendar o Rhône em sua diversidade, pois, assim como em Bordeaux, as latitudes, topografias, posição em relação ao rio, influências naturais e culturais fazem do Rhône uma região bastante plural quanto à sua produção de vinhos. Há uma diferença bem significativa entre os vinhos do norte (Rhône Setentrional) e do Sul (Rhône Meridional). A começar pelas cepas usadas e o estilo mais mono-cepage (muitos vinhos de uma variedade só) do Norte e o estilo plural do Sul, onde predominam as assemblages, às vezes envolvendo muitas uvas.  Mas a diversidade do Rhône vai muito além, engloba uma variedade de terroirs e estilos. Globalmente, 27 cepas são utilizadas para uma produção com predominância de tintos (79%), seguidos de 15% de vinhos rosés e 6% de brancos.

Mapa
Mapa

O Rio Rhône nasce nos Alpes suíços e percorre cerca de 800 km até chegar ao Mar Mediterrâneo. Os vinhedos e vilarejos – que têm no vinho forte sustentáculo de suas economias – o acompanham de norte a sul, às margens direita e esquerda do Rio. Caracteriza-se por um relevo bem acidentado, especialmente ao norte, e muitas vezes de difícil mecanização. Mesmo assim, a viticultura ali é a mais antiga francesa, especula-se que foi introduzida no século VI a.C. pelos gregos procedentes da Ásia Menor, mas certamente o seu desenvolvimento veio com os romanos.

Rhône Lyon - A bela e enogastronômica Lyon
Rhône Lyon – A bela e enogastronômica Lyon

A produção do Rhône setentrional está delimitada entre Vienne e Valence.  Bem menos numerosa e reduzida em superfície em relação à região Sul, tem uma média elevada de vinhos de alta qualidade, que fogem totalmente ao padrão dos Rhône genéricos. Predominam vinhos tintos da uva Syrah – potentes e longevos em graduações diferenciadas. No extremo norte, lado direito do Rio Rhône (sentido norte /sul) e não muito distante da capital Lyon, se encontra a AOC Côte Rôtie, onde se produz o Cru mais elegante e delicado, embora estruturado e de guarda. Seus vinhedos são plantados em encostas bem íngremes, com ótima exposição solar, o que confere às uvas alta concentração de açúcar e álcool.  Um vinho generoso em aromas, dulçor e potência, mas que tem no recurso da assemblage o segredo de sua elegância e delicada aromaticidade: é autorizado a usar até 20% da cepa branca Viognier na sua elaboração.

Cerca de 60 vinícolas produzem o Côte Rôtie e, dentre os mais conhecidos e conceituados, está a Domaine Etienne Guigal, cujos vinhos têm bela cor rubi, com aromas complexos, evocando flores (violeta), frutas vermelhas maduras e especiarias doces. A sede da Guigal fica em Ampuis, ao lado da Maison Vidal Fleury que, em 1984, foi adquirida pela Guigal, embora funcionem separadamente. Ambas têm vinhos comercializados no Brasil e produzem em várias AOC’s do Rhône Norte e Sul, embora a maior concentração seja no Norte.

Encostas do Cote Rotie
Encostas do Côte-Rôtie

Um dos vinhos mais conceituados da Guigal e da Vidal Fleury é o Côte Rôtie Brune et Blonde. Brune (a norte de Ampuis), e Blonde (a sul de Ampuis) são os nomes de duas encostas que abrigam os vinhedos mais notórios da AOP, cujos solos de areia, ardósia e calcário ajudam a tornar os vinhos “blonde” mais tenros e os vinhos “brune” (argila e óxido de ferro) mais austeros.

Degustação Vidal Fleury
Degustação Vidal Fleury

Apesar do prestígio no grande mercado nacional e internacional, percebi certas ressalvas de comerciantes locais a alguns produtores ícones da região, em função de suas grandes produções e comercialização pelas grandes cadeias de supermercados (como Casino, Carrefour, Auchan) e em redes do varejo especializado (como Nicolas). Seguindo indicação de um sommelier local, fui visitar um produtor de pequenos circuitos: a Cave Stéphane Montez du Monteillet, com produção mais reduzida em quantidade e abrangência de estilos. Realmente fiquei bem encantada com o seu Côte Rôtie Fortis 2012, que acabei adquirindo com custo um pouco superior à média dos demais e depois verifiquei que ele estava muito bem pontuado em várias publicações: Parker, Revue du Vin, Betanne et Desseauve, Hachette. Mas vale dizer que Guigal e Vidal Fleury também têm vinhos excepcionais e muito bem avaliados.

Cote Rotie Stephane Montez
Côte-Rôtie Stéphane Montez

Logo abaixo de Côte Rôtie, um clássico branco imponente: o Condrieu, elaborado 100% com a Viognier, uma vigorosa casta muito presente no Rhône e no sul da França, responsável por vinhos, que, de modo geral, são volumosos e untuosos em boca e muito perfumados, com nítidos olfatos de pêssego e damasco, além de notas florais. Existem versões mais frescas e frutadas, mas no caso do Condrieu, trata-se de um vinho seco, elegante e perfumado de aromas terciários. Na visita que fiz recentemente à cave do Produtor Paul Jaboulet Aîné, degustei um Condrieu extraordinário, com aromas de mel e damascos secos, amplo e persistente em boca. O preço acompanha: 60 euros a garrafa in loco!!! A reduzida superfície de produção do Condrieu ajuda a inflacionar o seu valor.

Os outros vinhos brancos do Norte do Rhône não utilizam a Viognier e sim a Marsanne e a Roussanne, com predomínio para a primeira. A denominação Saint Peray, a mais sul do Norte do Rhône, fica ao lado de Ardèche, cidade com grande fluxo de turistas. Ali se produz apenas brancos das duas castas – vinhos tranquilos e espumantes, muitas vezes bebidos como aperitivos. Normalmente são vinhos de baixa acidez, pouco alcoólicos, leves, tendendo a aromas florais e de frutas brancas e amarelas.

Enóloga Míriam Aguiar
Enóloga Míriam Aguiar

Os outros vinhos brancos são produzidos em denominações mais conhecidas pelos seus tintos – Hermitage, Crozes-Hermitade e Saint Joseph. Saint Joseph se situa, assim como os demais, à margem direita do Rhône, próximo à Cidade de Tournon. Seus vinhos são, em sua  maioria, tintos da uva Syrah, podendo haver um uso de até 10% de Marsanne e Roussane. São vinhos de AOC bebidos no dia a dia. Apresentam o caráter picante da Syrah e, embora, menos corpulentos que os Crus, se bebidos muito jovens, podem ter exemplares bem tânicos. É um vinho que teve uma reputação mais nobre no passado, perdida em parte pela ampliação das delimitações da AOC, por isso pode apresentar variações de qualidade consideráveis – decepções e boas surpresas em termos relação preço e qualidade.

O Saint Joseph da Domaine Jean Louis Chave é considerado por muitos uma raridade.
O Saint Joseph da Domaine Jean Louis Chave é considerado por muitos uma raridade.

Passamos ao Hermitage, o Grand Cru mítico da Rhône Setentrional, tão ou mais conceituado que o Côte Rôtie, cujo nome está associado ao fato da colina na qual repousam esses valiosos vinhedos do Rhône ter sido escolhida como lugar de retiro espiritual do Cavaleiro Gaspard de Stérimberg, recém-chegado das Cruzadas de Albigeois em 1224. O ermitão, seguido por outros produtores passou a se dedicar ao replantio dos vinhedos. No topo da colina se encontra uma Capela construída em homenagem a Saint-Christophe e, por isso, até o século XVII o vinho Hermitage era chamado de “Vinho da Colina de Saint Christophe”. A Capela de Saint Christophe dá nome a um dos mais notórios vinhos Hermitage, produzido pela Maison Paul Jaboulet Aîné: O Hermitage La Chapelle.

Colina Paul Jaboulet
Colina Paul Jaboulet

Hermitage e Crôzes-Hermitage são as únicas AOP’s que ficam à margem esquerda do Rhône. A comuna de Tain l’Hermitage fica ao pé da colina de Hermitage. De longe se avista as altas vinhas plantadas ao longo das colinas com 2 km de circunferência, compostas de quatro tipos de solos – calcário, granito, rocha arenosa e cascalho. Os vinhos tintos são majoritariamente de Syrah, podendo receber até 15% de Marsanne e Roussane no corte. O segredo de cada cepa está na assemblage das cepas provenientes dos vinhedos desses diferentes solos a cada safra. Os solos de calcário, portam muitos sedimentos e dão um caráter mineral e uma acidez mais vibrante ao vinho, os solos graníticos aportam notas de pedra fusil ao seu sabor, as rochas arenosas absorvem a água e o cascalho retém o calor, ajudando a administrar o impacto das condições climáticas nas vinhas.

Colina Hermitage
Colina Hermitage

O Hermitage é um vinho tânico em sua juventude e que com o tempo ganha muita complexidade organoléptica. Estruturado e intenso desde a cor, rico em aromas de frutas vermelhas, cassis e especiarias, tem potência e acidez na medida. Um vinho arrebatador, nada sutil, mesmo quando maduro e macio. O Hermitage branco, mesmo que produzido em reduzida quantidade, não fica atrás, trata-se de um grande vinho, também robusto e de guarda. Enquanto os Hermitage são elaborados com cepas dos vinhedos altos, os vinhos Crôzes-Hermitage vêm dos vinhedos mais planos. Mais dóceis e aptos a serem tomados jovens, podem apresentar misturas bem agradáveis de frutas vermelhas, especiarias, com certa rusticidade/virilidade – dependendo do produtor. Há Crôzes-Hermitages bem distintos.

Hermitage
Hermitage

O maior produtor do Hermitage, em quantidade, é a Maison Chapoutier, com sede em Tain l’Hermitage e dona de 34 ha de vinhedos da AOP. Com origem em 1.808, a Maison tem à sua frente Michel Chapoutier, da sétima geração de vinhateiros da família, responsável por uma considerável expansão dos negócios, que hoje conta com investimentos em várias AOP’s do Rhône, mas também na Alsácia, no Roussillon e na Austrália. A Cave de Tain é uma cooperativa também com grande produção, fácil acesso para compra e preços mais acessíveis. Outro produtor conhecido é o Delas. Em termos de qualidade, outro nome se destaca dentre os produtores de excelência dos Hermitage’s, que é a Domaine Jean-Louis Chave.

Colina Chapoutier
Colina Chapoutier

Finalmente chegamos aos Cornas, denominação bem ao sul do Rhône Setentrional e que, segundo o sommelier da Paul Jaboulet Aîné, é conhecido como “le vin du chasseur”, isto é: o vinho do caçador! O Cornas é o vinho mais rústico e selvagem da região. 100% Syrah, muito tânico na juventude, longevo e com uma rusticidade que nem sempre evolui para algo maior, como no caso do Hermitage. Mas isso pode acontecer e o Cornas vem sendo crescentemente reconhecido como um vinho mais notável.  Eu devo dizer que o vinho de 2007 que degustei estava muito bom: uma virilidade de dar gosto – intenso, mas com taninos fundidos, textura carnuda, com aromas de torrefação (café, tabaco), frutas pretas, pedra de fuzil – uma selvageria civilizada que me agradou bastante e que eu creio que ficaria perfeito com um prato de caça!

Cornas Paul Jaboulet
Cornas Paul Jaboulet

Bem, para fechar, vale dizer que a região em que se encontra os vinhedos do Hermitage tem latitude de 45o, o que lhe garante a mesma exposição solar norte e sul. Em relação à qualidade das safras, a informação é mais ou menos assim:  2009 e 2010 – excelentes; 2013 – reduzida quantidade e qualidade OK; 2014 – normal, nem ruim, nem excepcional; 2015: verão muito quente e seco acena grande risco de perda por excesso de maturidade. No próximo post, falarei sobre o Rhône Meridional!

Queria lembrar do lançamento do meu livro em São Paulo no próximo dia 12 de agosto de 2015 na Livraria Cultura da Paulista. Estão todos convidados a fazer um brinde comigo!

CONVITE LANÇAMENTO LIVRO

Míriam Aguiar é pesquisadora do mercado de vinhos, com Doutorado na USP e Pós-doutorado na UMR Innovation Montpellier, autora de livro e artigos sobre o tema e editora do Blog “Os vinhos que a gente bebe”
Míriam Aguiar é pesquisadora do mercado de vinhos, com Doutorado na USP e Pós-doutorado na UMR Innovation Montpellier, autora de livro e artigos sobre o tema e editora do Blog “Os vinhos que a gente bebe”

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