Por Míriam Aguiar –

 

“O leitor vai perceber que não tenho a menor dúvida de que a cerveja poderia, com a mesma propriedade, fazer parte de situações requintadas, além de muitas outras ocasiões. Apesar disso – e estou sendo franco – um jogo de associação que se ocupar de “cerveja” vai gerar imagens como gente falando em altos decibéis, fumaça de cigarro ou aquela praia informal.” Este é um trecho do livro “Vinhos versus Cervejas”, do notório cientista cervejeiro norte-americano, Charles Bamforth – no qual o autor faz todo um discurso de exaltação às cervejas, usando o contraponto do vinho, para mostrar que estão equiparados em qualidade.

Degustação de vinhos
Degustação de vinhos

O autor não precisaria recorrer ao vinho para evidenciar as qualidades da cerveja, já que o livro traz informações consistentes a esse respeito, mas, de qualquer modo, uma de suas motivações para a publicação é um repúdio ao tratamento banalizador da cerveja que as grandes marcas fizeram para expandirem seus mercados.  Enquanto ele se ressente dessa banalização, o mundo do vinho tem constantemente clamado por uma “descomplicação” dos vinhos, justamente para favorecer a expansão de seu consumo. Isso me faz refletir sobre algumas coisas. De fato, a imagem excessivamente ritualística do consumo de vinhos é alimentada  por muitos que inclusive se beneficiam de sua condição de “bem de luxo”. Isso é desnecessário para o desfrute da companhia do vinho, nem tampouco qualifica mais essa experiência, a menos que aqueles que o desfrutam desse modo gostem das coisas assim.

 

Levar traquejos da prática profissional dos especialistas de vinhos para a mesa do consumidor comum me parece muito mais uma afetação desse mercado do que algo inerente ao “bom” consumo de vinhos. E aí sim, eu posso dizer que tem muita gente que presta um desserviço à imagem do vinho, quando usa desses recursos para se vangloriar de uma condição de “entendedor” de vinhos. Achei bem interessante e muito “raro” escutar o comentário de Alexandre Lalas numa degustação na Expovinis de que ficar descrevendo aromas dos vinhos não qualificava essa experiência e que a qualidade está no conjunto do vinho. Afinal, a prática da degustação não é um jogo de adivinhação!!! Pode até ser divertido adivinhar aromas, mas não é para ser levado assim tão a sério, a menos que estejamos avaliando o degustador e não o vinho…o que também é questionável.

 

Mas voltando à complicação do vinho, receio que, a exemplo do que Blamfort lamenta em relação à cerveja, iniciativas reduzam a complexidade do produto em nome de uma simplificação do consumo, como se fossem elementos completamente incompatíveis. Desconfio da interpretação pautada apenas por interesses mercadológicos – vamos simplificar o vinho para vender mais, assim como reduzimos a complexidade dos textos e vivemos de colagens de palavras de efeito que se propagam como praga e evaporam como água nas redes sociais. Desconfio da música tola que repete os mesmos acordes e refrãos sem deixar uma mensagem que valha. Não vejo problema algum na existência desses produtos, mas não gosto da liquidez excessiva, que não nos impõe nenhum desafio e torna o texto, o roteiro, a experiência déjà vu.

 

 

Existem vinhos e vinhos e, em alguns casos, não dá para falar do vinho como se fosse chicletes tutti-fruti, guaraná ou Big Mac: dois hambúrgueres, alface, queijo, molho especial, cebola, picles num pão com gergelim! ». Temo que a simplificação seja pautada por um reducionismo do que se guarda na qualidade dos bons vinhos e que merece ser prestigiado. Um dos grandes méritos do vinho é ser diverso e a diferença que ele guarda é o que o distingue dos produtos em série. Por isso, creio que um dos maiores desafios do vinho é expandir seu consumo, deixando de lado a afetação que o ronda, sem esvaziar a sua complexidade, confundida com “complicação”.

 

Bardega Wine Bar - Várias maquinas servem em taça vinhos do mundo inteiro. Porções muito limitadas fazem com que antes mesmo de você beber, já tenha esgotado a sua cota financeira
Bardega Wine Bar – Várias máquinas servem em taça vinhos do mundo inteiro. Porções muito limitadas fazem com que antes mesmo de você beber, já tenha esgotado a sua cota financeira

Complexidade que existe na medida em que ele guarda uma dimensão cultural e simbólica, que faz de seu produto uma ponte para seus universos de origem, descobertas sensoriais distintas e a sociabilidade que se faz em torno dele. Mas vocês me perguntarão:  “que produto que não tem essa dimensão simbólica?” De fato, não é o produto em si que determina os seus significados – eles são  frutos de sua integração social. Na minha opinião, os menos desprovidos desse valor são aqueles que, em função de uma racionalidade do mercado, reduzem suas possibilidades de nos surpreender ou aqueles que não têm uma conexão com o que eu gosto e sinto e se prestam apenas a projetar uma imagem daquilo que eu não sou.

Douro - as videiras plantadas nas íngremes encostas da Região do Douro são um retrato de uma bela união entre o homem e a natureza
Douro – as videiras plantadas nas íngremes encostas da Região do Douro são um retrato de uma bela união entre o homem e a natureza

Os meus momentos mais sublimes evocados pelo vinho foram aparentemente banais – momentos em que a simplicidade da experiência e a complexidade do gosto do vinho se fundiram de forma a provocar um registro eternizado pela memória. Não se passaram na hospedagem de um Château ou em refeições aristocráticas, que tive o privilegio de frequentar, mas em ocasiões nas quais pude sentir de forma não previsível um sabor bem particular conectado à identidade daquela experiência da qual o vinho faz parte. Aconteceu, por exemplo, numa pousada da região do Douro, que tem uma pequena produção de vinhos, da qual tive conhecimento pouco antes de dormir, quando me dirigi ao proprietário para falar sobre algo da minha viagem. Ele me ofereceu uma taça do vinho que bebia – o vinho era de um violeta intenso, quase negro, muito persistente – que me levou consigo por alguns instantes.

 

Douro
Douro

Numa entrevista que assisti em vídeo ao produtor de um dos Premiers Grands Crus Classés de Bordeaux, ele dizia que a diferença que há entre os grandes vinhos e os “normais” é que enquanto estes nos provocam sensações, os outros nos provocam emoções, que não podem ser repertoriadas em descrições precisas de aromas e sabores. Talvez ele tenha razão, embora eu prefira desconsiderar o marketing de que só vinhos iguais ao seu podem provocar tal emoção, mas acho que o mais importante é que a experiência de tomar um vinho nos emocione e isso certamente não é provocado apenas pelo vinho, mas pela experiência de consumo que ele e seu contexto existencial pode nos provocar, como aquele que degustei em Portugal. Do vinho em questão, eu comprei uma garrafa, que ainda não abri, talvez por um receio (e uma certeza) de que ele não será capaz de me provocar a mesma emoção.

 

Au bon vivant – Bistrô francês em BH, com serviço de tacas de todos os vinhos da carta, vinhos bem selecionados, porções e preços honestos

Voltando ao ponto de partida, além das alfinetadas comparativas entre qualidades de vinhos e cervejas, Charles Bamforth sugere que o mercado de cervejas aprenda um pouco com o de vinhos acerca do tratamento diferenciado de sua imagem e consumo. No mercado brasileiro, o vinho fino ocupa espaço maior e mais evidente nas prateleiras de distintos varejos, alguns deles nunca dantes frequentado por alguns produtores, como as grandes redes de supermercados.

Pêra Manca branco em supermercado no Rio de Janeiro, bairro da Tijuca
Pêra Manca branco em supermercado no Rio de Janeiro, bairro da Tijuca

Aqui no Rio de Janeiro, o Mundial, rede de supermercados que trabalha na base do marketing de preço está com uma sessão enorme de vinhos, cujos preços desafiam qualquer competidor – é o marketing do vinho se rendendo à massificação e a gente ora para que ela tenha limites. Por outro lado, as cervejas artesanais ganham cartas nos restaurantes e lojas especializadas só para elas – é o marketing da cerveja entrando na seara sofisticada do vinho. E como muitas são caras!!! Mas o consumidor, que já gosta e está habituado à cerveja parece frequentar com mais desenvoltura esses ambientes. Espero que eles não aspirem ao esnobismo do mundo vinho e quem sabe valeria a pena dar  uma espiada nessa abordagem mais informal, mas não reducionista da qualidade da cerveja e ver se a gente também consegue aprender um pouquinho a ser simples e diferenciado?

Empório Alto dos Pinheiros: variedade de cervejas e ambiente descontraído
Empório Alto dos Pinheiros: variedade de cervejas e ambiente descontraído
Cervejaria Wals - Tasting Room da Cervejaria Wals em BH: qualquer semelhança com lojas de vinhos das vinícolas é mera coincidência
Cervejaria Wals – Tasting Room da Cervejaria Wals em BH: qualquer semelhança com lojas de vinhos das vinícolas é mera coincidência

 

Míriam Aguiar é pesquisadora do mercado de vinhos, com Doutorado na USP e Pós-doutorado na UMR Innovation Montpellier, autora de livro e artigos sobre o tema e editora do Blog “Os vinhos que a gente bebe”
Míriam Aguiar é pesquisadora do mercado de vinhos, com Doutorado na USP e Pós-doutorado na UMR Innovation Montpellier, autora de livro e artigos sobre o tema e editora do Blog “Os vinhos que a gente bebe”
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