Por Míriam Aguiar
Créditos das imagens: Gilmar Gomes
Diz-se do vinho que ele não é feito para se tomar sozinho, embora existam alguns vinhos considerados de « meditação ». Vinho para dois talvez seja a melhor medida. Vinho em família, como reza a tradição. No campo simbólico mais longínquo, o vinho é fonte de inspiração, exacerba humores românticos, eróticos, é símbolo de cultura e erudição. Mas os cenários do vinho contemporâneo têm se tornado cada vez mais especializados, de modo que aquilo que era uma prática estritamente profissional da expertise, da enologia e órgãos regulamentadores chega cada vez mais próximo do público não-especializado. Os eventos temáticos abrem espaço para o consumidor final, cursos e confrarias se multiplicam, visitas enoturísticas « aplicam » o pessoal na arte de degustar e harmonizar. E, assim, todos podem viver a experiência de ser expert por um dia. Afinal, num tempo em que consumidor é rei, ou você educa o gosto dele ou senta na plateia para ouvir aquilo que ele quer.
Fonte: http://www.dalpizzol.com.br/galeria.php
Neste post, vou falar de um evento que acontece num extenso galpão, assim como os grandes salões de vinhos, mas cujo objetivo não é colocar produtor e profissional/consumidor juntos para uma prova dos vinhos. Ali, a cena de uma avaliação especializada de vinhos chega a um grande público e, desta vez, é também o público que entra em cena. Falo da Avaliação Nacional de Vinhos, um evento muito peculiar, que acontece há 21 anos em Bento Goncalves, a capital do vinho brasileiro.
A Avaliação Nacional de Vinhos é um grande fórum de degustação, no qual se avaliam os vinhos da nova safra, que ainda não chegaram ao mercado. Considerada a maior avaliação mundial de vinhos de uma mesma safra, o evento acontece normalmente no mês de setembro, no Pavilhão do Centro de Convenções de Bento Gonçalves. Conta com um público médio de 800 pessoas – todos participando do ritual que caracteriza as avaliações de vinhos profissionais : uma sequência de amostras de vinhos, água, cuspidor e ficha de avaliação.
A ANV é organizada pela Associação Brasileira de Enologia, entidade representativa da ainda jovem safra de enólogos brasileiros. Aliás, este grande fórum não é fruto apenas dos progressos do vinho de qualidade no Brasil, mas também do fato de que esta é uma das poucas regiões brasileiras em que de fato beber vinho faz parte de sua identidade cultural.
Crédito da imagem supra: Gustavo Pádua
O evento começa no mês de agosto, quando uma centena de enólogos coleta, diretamente nas vinícolas, amostras dos vinhos inscritos, que serão catalogadas e avaliadas em algumas sessões para a seleção final. Neste ano, as amostras foram avaliadas em 8 sessões, de 20 a 29 de agosto, sempre às 9h30 (melhor horário para degustar), no Laboratório de Análise Sensorial da Embrapa Uva e Vinho. Do montante, são selecionadas as 16 melhores amostras, numa composição que seja representativa dos tipos de produtos resultantes da safra. Ou seja, os vinhos serão divididos por categorias e a seleção deverá dar uma visibilidade do que predominou em cada safra.
A safra de 2013 contou com 309 inscrições de 63 vinícolas dos estados do Paraná, Minas Gerais, Bahia, São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul para as categorias Branco Fino Seco Não Aromático, Branco Fino Seco Aromático, Tinto Fino Seco, Tinto Fino Seco Jovem e Vinho Base para Espumante. No total, 32 variedades foram abrangidas pelas amostras, o que acabou dando um perfil bem variado de cepas, que é bem representativo de uma tendência de experimentação varietal no Novo Mundo do Vinho. Numa fase inicial de globalização da produção de vinhos, predominava de forma bem imperativa o trabalho com 5 a 6 cepas das mais célebres produções francesas, mas, hoje, a tipicidade e o resgate de uvas da tradição ou de outras origens têm gradativamente ganhado lugar.
Não que as rainhas francesas tenham sido esquecidas, pelo contrário, dentre as 16 amostras selecionadas para a Final, cinco tinham, integralmente, ou em parte a variedade Chardonnay. No entanto, da Cabernet Sauvignon só havia um vinho, além de vinhos da Marselan, Terodelgo, Malbec e Cabernet Franc. No total, foram selecionados três Vinhos Base para Espumante, cinco Vinhos Brancos e oito Vinhos Tintos.
Crédito da imagem supra: Gilmar Gomes
A sistemática é a seguinte: cada um dos 16 jurados convidados para compor a mesa principal avalia, às cegas e publicamente, um dos 16 vinhos, com comentários e notas. O mesmo acontece com o público, que recebe os mesmos vinhos, servidos por alunos de Enologia e Viticultura do Instituto Federal do Rio Grande do Sul. Todos ganham uma Ficha de Avaliação, seguindo o padrão oficial da OIV, que associa 10 variáveis organolépticas a uma pontuação de 0 a 100. Além da nota do jurado, são apresentadas ao público as notas dadas para cada vinho na Pré-seleção dos enólogos e as médias da mesa julgadora. Ao final, os vinhos são revelados, juntamente com a classificação final.
A sessão conta com um grande ritual de apresentação, a participação de um júri de celebridades do mundo do vinho nacionais e internacionais e uma plateia que mescla personalidades do meio e pessoas que disputaram bravamente a sua participação: em apenas 4h, os ingressos vendidos antecipadamente se esgotaram. São 15 convidados e o 16° jurado é sorteado no início do evento. Este ano, coincidentemente, a pessoa sorteada era graduada em Enologia. Algumas homenagens: como a entrega do Troféu Vitis, concedido, neste ano, ao jornalista Irineu Fernando Guarnier Filho e ao enólogo Mario Geisse nas categorias Amigo do Vinho Brasileiro e Enológico, respectivamente.
O chileno Mario Geisse, diretor técnico e enólogo-chefe da Casa Silva, e proprietário da Cave de Geisse no Brasil, mostrou-se bastante emocionado com a homenagem recebida. Instalada desde 1979 no distrito de Pinto Bandeira, IP (Indicação de Procedência) que tem como produto representativo o espumante, a vinícola brasileira do chileno produz espumantes que estão, sem dúvida, dentre os melhores e mais premiados do Brasil. E a escolha deste respeitado enólogo pelo nosso terroir certamente valoriza a vocação brasileira para o espumante. Por outro lado, este prêmio mostra a nossa capacidade de acolher e prestigiar o estrangeiro.
Quanto aos vinhos apresentados, esta foi a ordem da seleção:
Vinhos Base para Espumante : Casa Valduga, Chandon do Brasil e Vinícola Geisse;
Vinhos Brancos: Riesling Itálico Aurora, Chardonnay Nova Aliança, Chardonnay Vinícola Góes e Venturini, Chardonnay Luiz Argenta e Sauvignon Blanc Miolo ;
Vinhos Tintos Secos : Cabernet Franc Salton, Teroldego Monte Rosário-Vinhos Rotava, Teroldego Don Guerino, Merlot Vinicola Perini, Merlot Bueno Bellavista Estate, Malbec Almaúnica, Marselan Dom Cândido E Cabernet Sauvignon Rasip Agropastoril
Veja as descrições organolépticas dos meus preferidos:
CHARDONNAY LUIZ ARGENTA VINHOS FINOS: Vinho límpido, amarelo esverdeado. Aroma delicado com predominância de notas de frutas cítricas, flores brancas, maçã (intenso), pêssego, frutas brancas maduras, baunilha e caramelo. No sabor tem uma certa doçura (do início ao final da boca), uma acidez marcante, é equilibrado e refrescante. É untuoso e apresenta um bom corpo. Tem um retrogosto intenso e longo.
VINHO BASE ESPUMANTE (PINOT NOIR) CAVE DE GEISSE: Vinho límpido, amarelo palha (leve dourado), com reflexos esverdeados e castanhos. O olfato é intenso, nítido, com notas de abacaxi, frutas cítricas, maçã verde, pêssego, flores brancas e sutil tostado. No paladar apresenta uma boa acidez, bom volume e corpo leve. Tem uma estrutura média, com sutil amargor no final da boca. É muito equilibrado, com media persistência.
MERLOT BUENO BELLAVISTA ESTATE: Vinho de aspecto intenso, rubi profundo, violáceo. No nariz é complexo, com notas de fruta madura, jabuticaba, mirtillo; também com notas de café, chocolate, tostado leve, compota, geleia e tabaco. No sabor, é encorpado, tem as notas do carvalho e um ataque adocicado. É intenso, guardando, ainda, certa adstringência. Os taninos são marcantes, agradáveis. Tem certa potência em álcool e certa untuosidade, persistência média/alta.
Crédito da imagem: Gilmar Gomes
De modo geral, a qualidade média dos brancos foi mais regular e, neste ano, particularmente, a safra está vocacionada a excelentes brancos. Com exceção do Vale do Rio São Francisco, o inverno pouco rigoroso e uma primavera quente no período de florada e brotação, antecipou o ciclo vegetativo das videiras, favorecendo apenas as cepas de ciclo curto, especialmente para vinhos brancos e espumantes. Por outro lado, a região da Campanha, que tem se revelado com maior potencial para tintas, foi afetada pelas chuvas, o que provocou uma perda significativa do volume de variedades de ciclo médio, como Merlot, Tannat e Terodelgo. Não obstante, as cepas que dão base ao corte espumante (Chardonnay, Pinot Noir e Riesling Itálico), tiveram uma safra muito feliz, o que pode ser percebido pelas amostras apresentadas.
Fonte: http://www.dalpizzol.com.br/galeria.php
A avaliação que se faz pelos comentaristas em público é, com certeza, menos significativa do que o processo que a antecede, feito em etapas sucessivas pelos enólogos, com mais precisão e rigor, dentro dos laboratórios da ABE. É necessário considerar que aquele é um momento de celebração e homenagens à nossa vitivinicultura e que qualquer avaliação mais pejorativa acabaria sendo um pouco “indelicada” por parte do convidado. Afinal, é uma cena emocionante de se ver, bem afinada e organizada, que nos dá a dimensão da importância do vinho brasileiro no RS e do glamour que permeia esse universo.
Crédito da imagem supra: Gilmar Gomes
Seja pelos vinhos da ANV e outros degustados na região, é incontestável o franco progresso da produção de vinhos nacional e a sua competência para fazer bons vinhos. O desafio é ser competitivo em preço e qualidade. Afinal, estamos formando consumidores cada vez mais exigentes: ele quer produto, preço e agora dá notas!
.
Sobre Autora: Míriam Aguiar é pesquisadora do mercado de vinhos, com Doutorado na USP e Pós-doutorado na UMR Innovation Montpellier, autora de livro e artigos sobre o tema e editora do Blog “Os vinhos que a gente bebe”.
É com muita satisfação que recebi e lí este post e confesso ter gostado muito.obrigado!!
É com muitíssimo atraso que faço as referências: super animador tomar conhecimento do esforço, seriedade e profissionalimso que nossa indústria e vinicultura avançam para estágio superiores em qualidade do que se faz no Brasil em matéria de vinho e assimilados, mas sem a divulgação do que é feito pouco adiantaria. Parabén pela cobertura e seguimos em frente, pois “no vinho, a verdade”!